Descarbonizar é missão possível: dá para zerar as emissões de carbono do transporte e da indústria até 2060

Semi, o caminhão pesado elétrico da Tesla

É possível descarbonizar a indústria pesada e o transporte pesado globais ​até 2060 com base nas tecnologias que já existem ou que estão próximas das prateleiras comerciais investindo menos de 0,5% do PIB do período 2015-2060.

 

Por Michael Holder para a Business Green

 

O alarmante relatório recentemente publicado pela ONU sobre como manter o aumento da temperatura média global do planeta abaixo de 1,5oC injetou uma grande dose de urgência e clareza na necessidade de criação de uma economia global de emissão de carbono zero até meados do século.

 

Frente aos resultados assustadores dos modelos climáticos, os executivos, acadêmicos e ONGs reunidos na Energy Transitions Commission (ETC) mergulharam nas áreas da economia vistas como de mais difícil descarbonização. Estamos falando das indústrias pesadas de alto teor de carbono e das tecnologias de transporte pesado que formam as bases da economia global e do nosso cotidiano, estamos falando do cimento, do aço, dos plásticos, do transporte, da navegação e da aviação que, literalmente, constroem o mundo moderno.

 

Estes setores intensivos em carbono somam hoje 30% das emissões de carbono originadas pela queima de combustíveis fósseis e, segundo especialistas, sua participação nas emissões pode vir a aumentar para mais de 60% até meados século, à medida que outros setores vão se descarbonizando.

 

Mas, com base em seis meses de trabalho e em consultas feitas a mais de 200 especialistas do setor, a ETC chegou a um relatório que chamam de “pragmático”, que abrange os frutos mais importantes da árvore do Acordo de Paris e se completa com caminhos e recomendações de políticas para garantir a emulação dos setores automotivo e de energia e para oferecer um caminho de descarbonização tecnológica e economicamente viável.

 

A conclusão abrangente e amplamente otimista é a seguinte: globalmente, é possível alcançar a descarbonização da indústria pesada e do transporte pesado ​até 2060 com base nas tecnologias que já existem ou que estão próximas da prontidão comercial. Chegar a emissões líquidas globais zero até 2060 não só é possível, como também é possível antecipar a data significativamente nos países desenvolvidos.

 

Além disso, a ETC concluiu que o custo da descarbonização destes setores pode ser menos de 0,5% do PIB de entre hoje e meados do século, ou ainda menor, se forem conseguidas melhorias na eficiência energética, na eficiência de recursos e uma redução na demanda pelo transporte carbono-intensivo.

 

Envolvidos na ETC estão figuras influentes de grandes corporações como Shell, BP, Drax, HSBC, Vattenfall, Veolia e Saint Gobain, além de representantes da ONU, de ONGs ambientais e acadêmicos conceituados como o professor da London School of Economics, Lord Nicholas Stern. A reputação dos membros da comissão e as descobertas apresentadas no relatório devem fazer com que os formuladores de políticas públicas e os líderes empresariais prestem atenção nas suas conclusões.

 

Lord Adair Turner é co-presidente do ETC e, em 2008, foi o primeiro presidente do Comitê de Mudanças Climáticas do Reino Unido. Ele descreveu a pesquisa como “otimista, mas realista”. Segundo Turner nós “podemos construir uma economia carbono zero com pequeno custo para o crescimento econômico, e devemos agora nos comprometer a conseguir este avanço até 2060, no mais tardar, e colocar em prática as políticas e os investimentos necessários para esta entrega”.

 

Muito bem, mas o que exatamente sugere a ETC? Como será possível a indústrias de alto conteúdo de carbono – e ainda em crescimento – se descarbonizar profundamente em algumas poucas décadas?

 

Eletricidade barata e livre de carbono será chave para descarbonizar a economia

 

Talvez sem surpresa para alguns, no cerne do relatório da ETC está a suposição crucial da eletrificação extrema do transporte e da indústria, o que aumentaria a participação destes setores na demanda de energia elétrica global dos 20% de hoje para 60% em 2060. Tal cenário implica aumento acentuado na demanda global de eletricidade, estimado entre quatro a seis vezes acima dos atuais 20.000TWh, o que levaria a demanda global às proximidades dos 100.000TWh. O cenário também abre para estes setores intensivos em carbono a possibilidade de se aproveitarem das energias renováveis ​​de baixo custo e baixo carbono.

 

O relatório também aponta a necessidade de implantação de fortes políticas para a eficiência energética, para a eficiência do emprego de recursos, a circularidade da economia e o gerenciamento da demanda por transporte pesado, políticas que, juntas, ajudariam a reduzir a demanda projetada por eletricidade em até um quarto.

 

Ainda assim, atender à nova demanda criada pela eletrificação de tantos processos tornaria o desenvolvimento da infraestrutura de energia carbono zero um desafio ainda mais assustador. Os engenheiros podem saber, em tese, como desenvolver redes de energia de baixo carbono, mas a ETC admitiu que a crescente demanda por energia limpa seria “desafiadora”. Especificamente, estamos falando de um aumento anual de 10% no ritmo atual de instalação de novas capacidades de geração eólica e solar e num enorme reforço das redes de transmissão. A ETC alerta que é possível que as emissões aumentem no curto prazo se a eletrificação da indústria e do transporte ocorrer mais rapidamente do que a descarbonização da geração de energia.

 

No entanto, o relatório estima que, com o aumento da competitividade das energias renováveis frente aos combustíveis fósseis em termos de custos, dentro de 15 anos será possível operar sistemas de eletricidade nos quais entre 85% e 90% da demanda de energia seja atendida por uma mistura de energia solar e eólica, combinada com baterias para backup de curto prazo. Atender aos restantes 10% a 15% seria mais desafiador, certamente, mas poderia ser feito pela capacidade despachável de geração de pico, via hidrelétricas, biomassa sustentável ou combustíveis fósseis com captura de carbono.

 

Em suma, com quantidades muito maiores de fontes de energia renováveis ​​de carbono zero, a descarbonização da indústria e dos transportes torna-se subitamente muito mais viável.

 

Um papel importante para o hidrogênio

 

Níveis muito mais altos de demanda por eletricidade limpa impulsionariam, também, o papel do hidrogênio, o qual, segundo a ETC, “tem grande probabilidade de vir a desempenhar um papel importante e custo-efetivo na descarbonização de alguns setores de mais difícil abatimento, além de ser também importante para a calefação de edificações e para a flexibilização de sistemas de geração”.

Mais especificamente, alcançar uma economia de emissões líquidas zero exigirá um aumento na produção de hidrogênio das atuais 60Mt anuais para algo entre 425Mt e 650Mt até meados do século, mesmo se os veículos movidos a hidrogênio vierem a desempenhar apenas um pequeno papel no transporte leve.

 

Para produzir o hidrogênio necessário, a eletrólise baseada em fontes de energia renováveis deve ​​se tornar cada vez mais custo-efetiva à medida que os preços da energia limpa caiam e os custos dos equipamentos diminuam. A ETC prevê que esse hidrogênio “verde” poderia representar cerca de metade da demanda esperada pelo gás. Enquanto isso, para a outra metade, a infraestrutura de CCS provavelmente precisará ser desenvolvida de modo a permitir a produção de hidrogênio “próximo do carbono zero” a partir da reforma de metano a vapor somada à captura de carbono – embora neste cenário seja crucial cortar drasticamente o vazamento de metano em toda a cadeia de valor deste gás, a fim de atingir o objetivo zero líquido.

 

Para desenvolver esta economia pesada em hidrogênio, a redução de custos das células de combustível e tanques de hidrogênio é uma prioridade, afirma a ETC, e o comércio internacional de H2 ou amônia provavelmente desempenhará um papel importante, o que exigirá investimentos significativos em infraestrutura.

 

O hidrogênio tem seus desafios, mas os seus defensores certamente encontrarão muito com o que alimentar suas ambições nas revelações da ETC.

 

Os desafios do transporte

 

Os caminhos de transição para o transporte são “menos complicados” do que para a indústria, segundo a ETC. Mas isso não significa que sejam simples.

 

Nas estradas, a adoção de veículos elétricos econômicos é vista como crucial, reforçada por uma mudança na logística de serviços pesados ​​para os transportes ferroviário e marítimo que reduza a demanda por caminhões. As motorizações elétricas “quase certamente acabarão dominando, dada a vantagem de sua maior eficiência em relação aos motores de combustão interna”, sendo que os biocombustíveis e o gás natural apenas desempenharão um papel “transitório”.

 

No entanto, a descarbonização da navegação e da aviação deverá se mostrar mais desafiadora. Nestas, os motores elétricos que usam baterias ou hidrogênio podem desempenhar um papel nas curtas distâncias, mas nos cursos longos a ETC aponta para os biocombustíveis ou os combustíveis sintéticos para os aviões, e a amônia ou o biodiesel para navios. Estes combustíveis provavelmente serão mais caros do que os combustíveis fósseis existentes, mas a ETC argumenta que o progresso tecnológico e as economias de escala podem reduzir custos.

 

Para a ETC, no geral, o transporte pesado, os caminhões e os ônibus elétricos provavelmente se tornarão custo-competitivos até 2030, mas é prioritário focar em P&D de combustíveis de baixo carbono para a aviação e a navegação de grandes distâncias.

 

Por uma indústria mais eficiente no uso de recursos

 

No coração da operação de uma indústria pesada carbono zero, existe um grande foco na eficiência energética, na eficiência de materiais, na reciclagem e, pelo menos no que toca ao cimento, no desenvolvimento da captura e estocagem de carbono (CCS).

 

No entanto, ao contrário de alguns outros modelos, para a ETC uma economia carbono zero pode ser alcançada sem “quantidades muito grandes” de CCS, com uma demanda potencial de algo entre 5Gt e 8Gt por ano apenas, e isso em grande parte para processos industriais da produção de cimento e não para a geração de energia.

 

Além disso, as necessidades de armazenamento exigidas para o CCS poderiam ser menores do que o sugerido por muitos cenários, devido às oportunidades de emprego no concreto, em agregados e na produção de fibra de carbono, que podem armazenar o CO2 em produtos e materiais.

 

Enquanto isso, uma economia mais circular e que possa melhor aproveitar os estoques existentes de materiais, junto com reciclagem e a reutilização, poderia reduzir em 40% as emissões de CO2 de quatro grandes setores da indústria (plásticos, aço, alumínio e cimento), chegando a 56% nas economias desenvolvidas.

 

O relatório diz que, “independentemente do caminho, nossa análise nos deixa confiantes quanto a ser possível descarbonizar os setores industriais mais difíceis a um custo por tonelada de CO2 economizada da ordem de US$ 60 ou menos para aço, US$ 130 ou menos para o cimento e US$ 300 ou menos para os plásticos”.

 

A que custo?

 

No entanto, para tornar todos esses cenários possíveis, o investimento precisa ser alavancado sem um custo muito alto para os consumidores ou as empresas, e a ETC reconhece que os maiores desafios – plásticos, cimento, aviação e transporte – podem ser relativamente caros para descarbonizar.

 

No entanto, estes custos podem ser reduzidos significativamente nos próximos anos, graças à queda dos custos de energia renovável, à maior eficiência energética e de recursos e ao desenvolvimento tecnológico futuro. O preço adequado do carbono – idealmente o mais abrangente possível e acordado internacionalmente – também é visto como fundamental pela ETC. Com todas estas medidas tomadas em conjunto, estima-se que a descarbonização é alcançável a um custo acessível.

 

Nos setores industriais, o investimento incremental total de capital de 2015 a 2050 poderia situar-se entre US$ 5,5 e US$8,4 trilhões, próximo a apenas 0,1% do PIB global ao longo deste período e menos de 0,5% dos prováveis ​​investimentos e poupanças globais. O investimento necessário na infraestrutura de recarga ou reabastecimento do transporte rodoviário, por sua vez, poderia representar apenas 5% do investimento habitual em infraestrutura de transporte. E, para a aviação e o transporte marítimo, “não seria necessário nenhum grande investimento de capital” se a descarbonização fosse alcançada principalmente por meio do uso de combustíveis carbono zero nos motores existentes.

 

“Investimentos em infraestrutura e ativos industriais necessários para a transição da indústria pesada e do transporte pesado para emissões zero de CO2 não são grandes se comparados às economias e aos investimentos globais, e não há razão para acreditar que a escassez de financiamento restringirá o caminho para as emissões zero de CO2, se forem desenvolvidos mecanismos de financiamento adaptados para tal”.

 

Mais uma vez, uma leitura atenta dos números, da tecnologia e da ciência demonstra que uma economia de carbono zero está dentro do alcance da economia global em uma única geração. Os desafios técnicos são, sem dúvida, significativos, assim como as oportunidades de negócios em termos de eficiência e economia, mesmo antes de serem considerados os novos mercados imensos que a inovação inimaginável poderia revelar.

 

Como observa Lord Nicholas Stern, “com a evidência inovadora fornecida pela ETC, existe um verdadeiro ímpeto para que todos os setores da economia embarquem no caminho para as emissões líquidas zero de CO2 e cumpram os objetivos de Paris”.

 

O desafio, como sempre, é garantir que os líderes empresariais e políticos ouçam a mensagem e comecem a desenvolver as estratégias críveis para o carbono zero líquido, que são tão urgentemente necessárias.

 

Artigo originalmente publicado em https://www.businessgreen.com/bg/news-analysis/3066637/optimistic-but-realistic-is-net-zero-transport-and-industry-globally-achievable-by-2060