Infraestrutura de transporte e unidades de conservação: problemas, soluções e equívocos

VIII CBUC Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação

O governo Bolsonaro, como muitos dos anteriores, quer fazer a natureza pagar o preço de projetos de infraestrutura que não levaram em consideração, desde a sua concepção, a existência de parques e outras unidades de conservação, terras indígenas e terras ocupadas por outras populações tradicionais. A atitude padrão é buscar reduzir as unidades de conservação para que estas não atrapalhem os projetos. No entanto, existem alternativas como a Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) e o Plano de Redução de Impactos (PRIM) que, se utilizadas no planejamento das infraestruturas, reduziriam em muito os problemas enfrentados no estágio de licenciamento ambiental e os conflitos na implantação dos projetos. 

Por Claudio Carrera Maretti*

 

Considerando a matéria “Por estradas e portos, governo federal quer reduzir 60 florestas e reservas”, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 12 de junho de 2019 e comentada aqui no ClimaInfo, entendo que o tema merece apreciação e esclarecimentos. [1]

Há, sim, problemas reais, concretos: uma série de estruturas de transporte estão em conflito com unidades de conservação.

Mas há, também, muitos problemas de planejamento da infraestrutura: planejar ou propor estruturas de transporte sem considerar adequadamente as unidades de conservação então existentes e as áreas prioritárias para conservação. [2] Dessa forma, normalmente se deixam as questões ambientais, sobretudo de conservação da natureza, e às vezes também as questões de respeito aos direitos das populações tradicionais, em último lugar. [3] Ou seja, esses aspectos, direitos, capitais e oportunidades muitas vezes não são considerados adequadamente nos planos e projetos. E estes terminam, então, no final, por reclamar de demoras no licenciamento ambiental (cujos prazos e regras normalmente não são bem considerados nesses planos e propostas) e exigir mudanças nas unidades de conservação (isto é, normalmente pretendem que os “outros”, as áreas protegidas e populações tradicionais, se ajustem).

Assim, há, sobretudo, problemas de concepção sobre desenvolvimento sustentável e especialmente sobre qualidade de vida. Isso leva a que as soluções para os problemas (mencionados acima, entre outros) muitas vezes sejam resolvidos em detrimento da natureza (e às vezes em detrimento dos direitos das populações tradicionais), e não com adaptações ou, idealmente, melhorias nos modelos e nas propostas de transporte.

Há muito se fala da importância da avaliação ambiental estratégica, a ser aplicada na fase de planos e programas (antes de propostas de obras ou projetos específicos). Isto é, se deveriam considerar as diretrizes para planos e programas de forma mais integrada, transversal, e considerando os benefícios da sustentabilidade –sociais, econômicos e ecológicos– de forma ampla. [4] Mas uma opção, mínima, seria considerar os setores econômicos e sociais e o meio ambiente, particularmente a conservação da natureza e respeito às populações tradicionais, em iguais condições.

Além disso, muitas vezes não se consideram os impactos indiretos. Ou seja, a avaliação de uma estrada (ou de uma hidroelétrica etc.) não deve somente considerar o impacto da própria construção, mas sim da promoção da migração, ocupação, grilagem de terras e conversão de ecossistemas (desmatamentos etc.) que ela gera no entorno e na (sub)região onde atinge. Ou seja, a conservação das áreas mais conservadas da natureza pode ser afetada pela pressão de ocupação gerada pelo acesso de uma estrutura de transporte (ou atraídas pela instalação de equipamento de geração de energia). [5]

Além de melhor planejamento dos setores econômicos e sociais e de considerações das questões ambientais ao menos em igualdade com esses setores, as soluções para os problemas concretos não podem sempre querer que a natureza “pague o preço”. Inclusive porque isso significa prejuízos à qualidade de vida da sociedade (incluindo saúde, lazer, esportes, educação etc.) e prejuízos econômicos.

Considerando o valor das unidades de conservação e os serviços gerados pelos ecossistemas, cortar, reduzir e potencialmente degradar unidades de conservação pode representar perdas de oportunidades e custos diretos e indiretos, como, por exemplo, redução de potencial turístico (ao menos o turismo sustentável e com base na natureza), custos de tratamento de água, redução de saúde pela menor presença das áreas naturais como opções de lazer, de recuperação da saúde e de filtragem e oferecimento de ar puro, aumento da susceptibilidade a consequências negativas de desastres, em particular com a chegada das mudanças climáticas, etc. Ou seja, técnica e conceitualmente, o bom planejamento considera a necessidade de manutenção das áreas naturais e de sua qualidade ecológica para o bem-estar humano da sociedade e as boas condições da economia.

Pensando nisso, os defensores do desenvolvimento sustentável, procuram soluções. Além da avaliação ambiental estratégica, há a proposta dos planos de redução de impactos na biodiversidade (Prim’s). Sua intenção é justamente prever eventuais interferências mútuas entre propostas de ocupação, construção ou exploração e necessidades de conservação da natureza. A integração entre essas potenciais intenções e essas necessidades nas fases de planejamento. [6]

Ou seja, os especialistas em conservação da natureza buscam soluções, integradoras, melhores, mais estratégicas, em benefício da sociedade. Essas perspectivas de que as áreas naturais atrapalham, ao contrário, buscam o confronto, as vantagens específicas ou individuais geralmente com prejuízo coletivo, ainda que travestidos de “interesse público”.

 

Notas
[1] Tudo aqui apresentado parece valer, não somente para transportes (estradas, aeroportos, vias aéreas, hidrovias etc.), mas também para outros setores, como energia (hidroelétricas, linhões, poços de petróleo, termoelétricas, campos, sistemas, parques ou usinas de produção de energia eólica ou solar etc.), conversões de ecossistemas (plantações, desmatamentos etc.) e ocupações (loteamentos, condomínios, propostas de resorts etc.), entre outras propostas de “desenvolvimento” (as quais, quando propostas da forma acima indicada, não são sustentáveis, por definição).

[2] Ao propor ou criar unidades de conservação é adequado considerar todas as ocupações e infraestruturas existentes, além dos planos de ocupação, construção ou exploração (futuros, portanto). No entanto, ao planejar ou propor ocupações, construções ou explorações, não parece ser parte dos procedimentos usuais considerar adequadamente as áreas protegidas (unidades de conservação e outros tipos) existentes e as propostas de conservação ou áreas prioritárias para a conservação da natureza ou da sua biodiversidade.

[3] As questões ambientais incluem a qualidade de vida em áreas urbana, o saneamento básico, amplo, as mudanças climáticas, a saúde do trabalho etc. Todas muito importantes. Mas não se pode descuidar da conservação da natureza, da defesa dos ecossistemas, com os serviços que eles nos prestam à sociedade, e das espécies da vida silvestre. Pode se considerar as sociedades humanas como parte do meio ambiente, mas é importante também termos áreas e condições onde a natureza tenha espaço e condições para funcionar e evoluir. As populações tradicionais, incluindo povos indígenas, quilombolas, comunidades extrativistas, ribeirinhas, pescadores artesanais, coletores etc., também merecem atenção específica. Considero que, dentro dos aspectos aqui indicados (nesta nota), a conservação da natureza e dos ecossistemas, ou da biodiversidade, é relativamente o que menos atenção recebe, proporcionalmente.

[4] Considerando que as avaliações de impacto ambiental típicas da licença ambiental prévia normalmente, e cada vez mais, consideram cada proposta ou projeto de forma específica e consideram propostas ou projetos já em grande parte decididos. (Em lugar de considerar as alternativas locacionais e de tipo de atividade – por exemplo, se a melhor opção é rodovia ou ferrovia – e a opção ou possibilidade de não fazer, como definidas conceitual e legalmente.)

[5] Apesar de previstos em estudos de impactos ambientais, pelo menos naqueles bem feitos, isso nem sempre aparece nos debates que pretendem orientar políticas públicas.

[6] “O Plano de Redução de Impactos – PRIM é uma ferramenta de apoio à decisão e gestão ambiental, que tem como principal objetivo gerar cenários de compatibilização entre a conservação da biodiversidade e o desenvolvimento de atividades socioeconômicas, por meio da identificação de medidas objetivas de redução dos impactos potenciais e da busca de espaços geográficos onde se garanta a manutenção dos serviços ecossistêmicos e de populações viáveis de espécies, sem prejuízo da construção e operação de empreendimentos e atividades.” (Fonte: http://www.icmbio.gov.br/…/fau…/planos-de-reducao-de-impacto. Referência geral: “Plano de Redução de Impactos à Biodiversidade – PRIM”, por ICMBio, em 2018 – http://www.icmbio.gov.br/…/stori…/docs-prim/PRIM_Livreto.pdf. Referência específica: “Plano de Redução de Impacto de Infraestruturas Viárias Terrestres sobre a Biodiversidade – PRIM-IVT”, por ICMBio, em 2018 – https://www.researchgate.net/…/332151464_PRIM-IVT_ICMBio-_P….)

 

* Cláudio C. Maretti, Ph.D., é consultor e pesquisador independente, especialista em conservação da natureza e seu uso sustentável com atenção especial para áreas protegidas e comunidades locais e tradicionais, e apoio ao desenvolvimento sustentável, ordenamento territorial e relações entre sociedade e natureza.

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