Fome: aquecimento aumenta o risco de uma nova grande crise global

Uma mulher somali segura uma criança desnutrida, esperando por assistência médica da African Union Mission in Somalia (AMISOM). A Somália é o país mais afetado por uma seca severa que atingiu grandes porções do chifre da África, deixando aproximadamente 11 milhões de pessoas necessitando de ajuda humanitária

Fome: na foto, mulher aguarda ajuda na Somália devastada pela seca em 2011 (Stuart Price / ONU Multimedia)

 

Uma nova crise global de fome, como a provocada por grandes secas no final do século XIX e que custou 50 milhões de vidas, tem chances de ocorrência aumentadas pelo aquecimento global provocado pela humanidade, que pode provocar  um novo colapso mundial das lavouras.

Por Tim Radford para a Climate News Network

 

A mudança do clima provocada pelo aquecimento global induzido pelo homem pode gerar mais uma vez as condições para que se repita um dos mais trágicos episódios da história da humanidade, a Grande Seca e a Crise Global de Fome de 1875 a 1878.

 

Estes anos foram marcados por secas generalizadas e prolongadas na Ásia, no Brasil e na África, secas desencadeadas por uma conjunção de condições incomuns nos oceanos Pacífico, Índico e Atlântico Norte.

 

Supõe-se, hoje em dia, que aquela crise de fome pode ter ceifado até 50 milhões de vidas, e ter sido mais fatal devido às condições políticas ligadas à dominação colonial dos três continentes no século XIX.

 

A mensagem que vem de uma pesquisa recentemente publicada no Journal of Climate é drástica: o que aconteceu antes pode se repetir.

 

Um dos gatilhos da Grande Seca, foi um episódio cíclico de aquecimento das águas do Pacífico, chamado El Niño, conhecido por reverter padrões climáticos globais, incendiar florestas tropicais e desestabilizar as sociedades.

 

Outro fator foi uma série de recordes de temperaturas altas no Atlântico Norte associadas à seca no norte da África.

 

O terceiro gatilho foi um dipolo do Oceano Índico anormalmente forte, que é uma mudança cíclica da temperatura, recentemente associada à fome no chifre da África.

 

A seca e a fome de 1875-78 começaram com a ausência das monções na Índia e na China, levando à mais intensa seca nos últimos 800 anos. Morreram tantos na província de Shanxi, na China, que só em 1953 a população conseguiu voltar aos níveis de 1875.

 

A combinação de temperaturas oceânicas recorde e um El Niño muito forte intensificaram e prolongaram as secas no Brasil e na Austrália. Acredita-se que um milhão de pessoas tenha perecido no Nordeste do Brasil.

 

Na Índia, o governo colonial britânico continuou a acumular e exportar grãos para a Inglaterra, e, segundo os autores, a manter “a alta arrecadação de impostos”.

 

A fome, seguida pelo tifo e pela cólera, enfraqueceu tanto as sociedades asiáticas e africanas que os franceses puderam colonizar o norte da África e as forças britânicas conseguiram finalmente derrotar a nação Zulu, na região da África do Sul, em 1879.

 

De fato, dizem os autores, a crise de fome foi importante para aumentar as desigualdades globais e dividir o globo em “primeiro” e “terceiro” mundos.

 

Agora, Deepti Singh, climatóloga da Universidade do Estado de Washington, em Vancouver, identificou um enfraquecimento inquietante das monções do sul da Ásia.

 

Em seu último trabalho, a climatóloga e seus colegas analisaram atentamente os registros históricos e o que os cientistas chamam de evidência indireta (proxy evidence) – medidas de anéis de árvores em todo o mundo, por exemplo, para identificar as condições climáticas globais que devem ter provocado a seca e a fome.

 

“As condições climáticas que causaram a Grande Seca e a Fome Global decorreram da variabilidade natural”, escrevem os pesquisadores. “E sua recorrência – com impactos hidrológicos intensificados pelo aquecimento global – poderia novamente comprometer a segurança alimentar global”.

 

A questão da segurança alimentar e o impacto da mudança climática, de fato, se tornaram temas recorrentes de várias pesquisas.

 

Os cientistas alertam repetidamente que o aquecimento global provocado pela ação humana só pode intensificar as secas, não apenas nas regiões consideradas vulneráveis, mas também nas terras agrícolas férteis e prósperas dos EUA e nas florestas tropicais da Amazônia.

 

Estudos do passado remoto identificaram uma seca prolongada e catastrófica que ocorreu há muito tempo no Mediterrâneo oriental, berço da agricultura e que passa, novamente, por uma seca persistente.

 

Pesquisas mais recentes confirmaram que os extremos de calor e seca podem afetar seriamente o rendimento da produção de grãos na Europa e a produtividade das lavouras em todo o mundo, enquanto a seca e monções mais fracas são ameaça premente à produção de alimentos no sudeste da Ásia.

 

A agricultura em qualquer lugar sempre é uma aposta em um padrão familiar do clima. Os agricultores tendem a plantar aquilo que dá bons resultados, e, sempre, alguns agricultores em alguns lugares vão se deparar com colheitas ruins.

 

No entanto, o estudo mais recente confirma que qualquer mudança nas forças globais que determinam o clima – e estas incluem as temperaturas do ar e dos oceanos – também podem aumentar a chance de uma espécie de disrupção múltipla do que é considerado o normal.

 

E isso, sugerem os pesquisadores, poderia trazer de volta o risco triplicado de mudanças desastrosas em todos os três oceanos ao mesmo tempo. Uma seca prolongada e generalizada pode se tornar ainda mais grave.

 

Nos últimos 150 anos, o mundo mudou política e economicamente, mas os pesquisadores dizem que “tais eventos extremos ainda poderiam resultar em choques severos ao sistema alimentar global, com a insegurança alimentar local em países vulneráveis potencialmente amplificados pelas atuais redes globais altamente interconectadas do comércio de alimentos”.

 

E eles argumentam que uma melhor compreensão de como o mecanismo do clima produz secas tão devastadoras “deve se traduzir em melhor previsibilidade das consequências de eventos futuros e permitir o gerenciamento mais eficaz de crises alimentares dela decorrentes, para que a próxima Grande Seca não desencadeie outra Grande Crise de Fome.”

 

Artigo publicado originalmente pela Climate News Network.