A pandemia provocada por um singelo virus e o caos econômico subsequentenos obrigam a olhar para trás e reconhecer que quase todas as pandemias recentes se originam em animais, são zoonóticas.
Maria Cecilia Wey de Brito*
O caos global instalado por um singelo vírus nos obriga a olhar para trás e reconhecer que quase todas as pandemias recentes se originam em animais. Embora a contaminação esteja diretamente ligada às atividades humanas, o fato é que mais de 60% das novas doenças infecciosas (e quase todas as pandemias recentes) provêm de animais. A maioria vem da vida selvagem (71,8%), incluindo Ebola, síndrome respiratória do Oriente Médio (MERS), síndrome respiratória aguda súbita (SARS) e HIV.
A ligação entre a atividade humana e as doenças zoonóticas é complexa e depende do contexto. Por isso doenças zoonóticas, afetadas por muitos fatores ecológicos e evolutivos, são difíceis de serem previstas. No entanto, os cientistas concordam que as mudanças no uso da terra induzidas pelo homem e a caça/comércio de animais selvagens são fatores-chave. O contato humano com animais selvagens durante caça, comércio, abate e consumo está diretamente relacionado ao surgimento do HIV/AIDS (chimpanzés), por exemplo.
Uma recente revisão da literatura até os anos de 1940 constatou que fatores relacionados à agricultura estavam associados a mais de 25% de todas as doenças infecciosas – e mais de 50% das zoonóticas – que surgiram nos seres humanos. Esses percentuais provavelmente aumentarão à medida que a agricultura se expandir e se intensificar. O desmatamento, por exemplo, modifica a estrutura dos habitats e diminui a área disponível para a vida selvagem, aumentando a interação entre humanos e a vida selvagem. Também pode fragmentar habitats em áreas menores de terras agrícolas ou assentamentos humanos (“efeito de borda”) que podem promover ainda mais interação com patógenos, vetores e hospedeiros de animais. Esses fatores combinados contribuíram para o surgimento de zoonoses, como as doenças de Lyme e a malária.
O desmatamento de florestas para lavouras e gado (incluindo, mas não se limitando a, produção industrializada) e ações da indústria extrativa (mineração e exploração madeireira) podem impactar negativamente o meio ambiente, criando uma cascata de fatores que facilitam o surgimento e a propagação de doenças. Por exemplo, mudanças nas práticas agrícolas contribuíram para o surgimento do vírus Nipah (de morcegos frugívoros para porcos) e MERS-CoV (originalmente encontrado em camelos). Nos sistemas industrializados de produção pecuária, numerosos animais são mantidos em pequenos espaços, facilitando a propagação de doenças, incluindo as gripes aviária e suína.
Esses dados elevam a preocupação com o desmatamento da Amazônia que, em 2019, teve um recorde e, nos meses recentes, mantém a trajetória ascendente. Nos primeiros três meses de 2020, a Floresta Amazônica perdeu cerca de 795 km2 de cobertura vegetal, uma área correspondente à cidade de Nova York. Esse número é 50% mais alto que o registrado no mesmo período do ano passado. Os dados são do sistema DETER de monitoramento do desmatamento da Amazônia, operado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) do governo federal brasileiro. Só em março passado, o sistema DETER emitiu alertas de desmatamento de mais de 300 km2, 30% a mais do que o registrado no mesmo mês em 2019.
De 1º de agosto do ano passado até 11 de junho deste ano, foram feitos alertas para a derrubada de 6.870 km² de floresta. Entre 1º de agosto de 2018 a 31 de julho de 2019, foram 6.844 km². Os registros do mês de junho deverão estão disponíveis somente em 10 de julho, conforme relata Giovana Girardi no Estadão.
Até agora essa destruição não liberou nenhum vírus ou bactéria que afete a saúde humana, mas é inevitável concluir que estamos brincando de roleta russa: cada quilômetro quadrado a mais pode nos colocar em contato com um patógeno desconhecido e eventualmente mortífero.
Embora o vínculo entre biodiversidade e doenças seja variável e dependente do sistema de doenças ou ecologia local, os cientistas concordam que preservar ecossistemas intactos e sua biodiversidade geralmente reduz a prevalência de doenças infecciosas oriundas de animais.
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* Maria Cecilia Wey de Brito, mestre em Ciência Ambiental pela Universidade de São Paulo e Engenheira Agrônoma pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiróz (ESALQ/USP), foi Secretária Geral (CEO) do WWF-Brasil por 4 anos. No Governo Federal, trabalhou no Ministério do Meio Ambiente como Secretária Nacional de Biodiversidade e Florestas. No Governo do Estado de São Paulo foi Diretora Geral do Instituto Florestal e Diretora Executiva da Fundação Florestal. Desde 2016 está no Ekos Brasil como responsável por relações institucionais e coordenação de projetos.
ClimaInfo, 19 de junho de 2020.
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