Carta a Barroso e a Patrícia sobre bioeconomia como salvação da Amazônia

Em carta ao ministro Luis Roberto Barroso, do STF, e à professora de direito constitucional Patrícia Perrone Campos Mello, Denis Minev* propõe uma leitura alternativa do que aconteceu na Amazônia entre 2004 e 2012, período de expansão econômica e de redução do desmatamento da floresta, e também discute a necessidade de recursos humanos qualificados para a promoção da bioeconomia como salvação da floresta, “o que não temos nem teremos em 10 anos”. A pergunta que Minev tenta responder na carta é a seguinte: o que faremos enquanto isso? Denis foi motivado a escrever a carta pelo artigo “Bioeconomia pode salvar a Amazônia”, assinado pela dupla e publicado na coluna Tendências e Debates da Folha de S. Paulo.

Caros Patrícia e Ministro Barroso,

Primeiro gostaria de saudá-los pela liderança nacional neste período difícil que vivemos.

Li com atenção seu artigo a respeito da bioeconomia na Amazônia. Gostaria de tecer alguns comentários. Sei da sua óbvia boa intenção e não a questiono. Mas acredito que o tema amazônico é de complexidade mais profunda que não se presta a soluções simples. Ainda acredito (e sei que vocês também) na força das ideias, do conhecimento e do diálogo para o convencimento de cidadãos, num debate que pode ser acalorado mas respeitoso. Nosso país tristemente perdeu esse espaço.

Permitam-me me apresentar. Sou hoje diretor presidente da Bemol, conglomerado baseado em Manaus que opera na Amazônia (Acre, Rondônia, Roraima e Amazonas) em varejo, serviços financeiros e energia renovável. Anteriormente servi como Secretário de Planejamento e Desenvolvimento Econômico no governo do Amazonas entre 2007 e 2009 e co-fundei duas ONGs importantes, a Fundação Amazonas Sustentável e o Museu da Amazônia. O período em que servi foi de grande crescimento econômico e de brusca queda no desmatamento, pelo que me orgulho. Circulo hoje nos mais diversos meios (ONGs, governos, empresários, interiores e capitais) de onde chego a algumas conclusões.

Vocês exaltam no artigo o período entre 2004 e 2012 como de grande sucesso. Vivi este período no governo e gostaria de compartilhar como essa grande queda de desmatamento se deu e os motivos que isso não é nem replicável, nem desejável desta forma.

1. Melhoria do monitoramento e policiamento. Foi mais ou menos naquela altura que a disponibilidade de satélites melhorou muito e conseguimos ter em tempo real boas informações. Além disso, se investiu a nível federal e estadual em policiamento e inteligência. Esse policiamento ajudou a reduzir a níveis baixos a criminalidade ambiental de grande escala na região. Isso funcionou bem até 2015. Na crise o volume de investimento foi reduzido bruscamente. No início do governo Bolsonaro, o Moro removeu boa parte dos bons policiais federais com experiência na Amazônia para lutar contra crimes no resto do Brasil e depois o desmonte do IBAMA, etc., eu não preciso lhes dizer.

2. Leis e instituições mais rígidas. Com leis cada vez mais rígidas, a atividade econômica legal na região foi secando. Apenas como exemplo, minha família foi por muitos anos exportadora de óleos e essências da floresta, como copaíba, andiroba, cumaru e pau-rosa. Nosso principal cliente era a Chanel, pois usa o pau-rosa no Chanel Number 5. Em 2010 decidimos abandonar esse negócio, dado o cipoal regulatório e os crescentes riscos de criminalização de atividades ligadas à floresta. Todos os bons empresários de Manaus que tinham negócios que envolvem a floresta desistiram durante esse período, desde exportadores de peixes ornamentais a fabricantes de produtos que usam insumos não florestais.

Mas se a economia formal e informal foram para o brejo, como tudo foi tão bem?

1. O período foi o superciclo das commodities. As áreas já desmatadas e produtivas (principalmente no Pará, Mato Grosso e Rondônia) se tornaram extraordinariamente rentáveis e o valor da terra desmatada aumentou bruscamente. Mas com o monitoramento e policiamento se conseguiu conter a pressão por desmatamento, enquanto a economia prosperou. Mas note que apenas onde o desmatamento já havia ocorrido. Atividades novas que deveriam prosperar, com a floresta de pé, nenhuma deu certo. Por exemplo, não há projetos de manejo florestal sustentável, sempre uma bandeira ambiental, que tenham dado certo. Os dois cases sempre apontados, Amata e Orsa, faliram. Além disso, o superciclo de commodities também beneficiou exportadores de minérios, especialmente o Pará, que viu os investimentos se multiplicarem. Com o enriquecimento das commodities, a Zona Franca de Manaus, que produz primariamente para consumo interno no Brasil, viu a demanda por seus produtos explodir (TVs, motos, celulares, etc.).

2. Transferências federais, tanto para pessoas quanto para prefeituras. Para pessoas, Bolsa Família e Aposentadoria Rural, dentre outros, irrigaram os interiores com um volume de recursos muito maior do que existia. Para prefeituras, o volume de recursos do Fundo de Participação de Municípios e outras transferências fez com que as prefeituras se desconectassem da economia local e elas se tornassem a grande fonte de empregos. Com isso, as populações migraram da área rural para a área urbana, tendo sua renda no governo federal e seus empregos trabalhando para prefeitos.

Esse modelo funcionou enquanto brasileiros tiveram a disposição de bancar a inatividade na Amazônia. Com a crise de 2015, essa disponibilidade foi se esvaindo e com o atual governo atingiu um pico.

Para lhe dar o contexto político, vou lhe contar uma história de 2007 mas que poderia ser de 2020. Tailândia (cidade do Pará), foi a cidade escolhida para envio do Exército pois tinha os piores índices de desmatamento nos meses anteriores. Essa foi a operação Arco de Fogo quando Marina era ministra. O Exército foi recebido sob protestos mas à força fechou as serrarias, que eram a principal atividade econômica do município. As serrarias eram todas processadores de madeira ilegal, extraída dos arredores, que eram terras públicas. Naquela altura eu servia como presidente do CONSEPLAN (Conselho de Secretários de Planejamento) para a região norte. Fizemos a reunião de secretários de planejamento do norte lá, para discutir contextos e soluções. O prefeito de Tailândia, por exemplo, fez enorme pressão sobre a governadora pois toda a atividade econômica da região havia parado com a presença do exército. Depois do Exército partir, o governo federal focou em cadastrar bolsa família lá e aposentadoria rural, reforçou convênios com o município e assim as taxas de desmatamento caíram.

Creio que devem concordar que isso não é construir sustentabilidade. Sustentabilidade de verdade requer uma economia próspera, com alguma atividade econômica, com empregos, com produção (mesmo que seja intelectual).

Pulemos então para 2020. Novamente enviamos o Exército para a Amazônia. A situação hoje é que, afora a Amazônia desmatada que produz gado (de baixa produtividade em geral) e soja (de alta produtividade), a economia em meio à floresta em pé inexiste. É neste solo que entendo o seu artigo planta a semente da bioeconomia. Concordo com o conceito. Entretanto, é preciso entender o que existe “in the ground”. O principal instituto de pesquisas da Amazônia, o INPA, tem orçamento anual inferior a R$50 milhões. A Universidade de Stanford tem USD 6,8 bilhões. Não podemos falar com seriedade a respeito de bioeconomia quando não temos a menor condição de competir neste meio por pura falta de recursos humanos. Dos 27 milhões de brasileiros que vivem aqui, quantos tem doutorado? Se queremos falar sério, precisamos no mínimo de uma Stanford em Manaus e um MIT em Belém, e depois aguardar pelo menos uma década. Isso se o Brasil desejar priorizar a Amazônia. Servi até recentemente no conselho da CAPES e posso falar categoricamente que apesar de muitos brasileiros vocalizarem suas opiniões a respeito da prioridade que a Amazônia deveria ter, na hora de repartir bolsas e recursos, o Sudeste é voraz e não deixa margem para acreditar que o discurso sobre Amazônia é mais que algo para “inglês ver”.

Apenas para tratar rapidamente do que acho que é a solução para a Amazônia, no que diz respeito em conjunto à prosperidade econômica e ambiental, teço alguns comentários.

Minha leitura do desmatamento é que ele é um efeito colateral de um sistema ruim, que dá incentivos perversos e perpetua a pobreza e ilegalidade junto ao crime ambiental. Se tentarmos abordar o problema de frente e focar apenas no desmatamento e não em todo o sistema ao redor, podemos ter uma vitória temporária, mas esta não resolverá o problema. O objetivo deve ser dissolver o problema.

Creio que sob alguns aspectos, não é diferente do problema das drogas e do crime. Enfrentá-lo, com leis mais duras e mais polícia, pode até funcionar temporariamente, mas esta não será uma vitória duradoura. É preciso caçar a causa raiz, compreender o contexto e buscar soluções que para alguns parecem contraditórias. Minha crítica à maior parte das ONGs é que, apesar de reconhecer que elas têm o coração no lugar certo, não têm a profundidade de conhecimento e compreensão da região para desenhar soluções duradouras.

Argumento que a única solução possível em busca da prosperidade tanto econômica quanto ambiental é a formalização das economias e das sociedades. Há coisas básicas, como tirar CPF, que já foram em grande parte abordadas. Mas a maior parte das empresas não tem CNPJ ou não paga nenhum imposto. Ainda hoje há municípios no Amazonas que arrecadam zero de ICMS, ISS ou IPTU. Todos comem peixe e a maioria pesca, mas ninguém o faz legalmente. Muitas famílias plantam mandioca, tudo também ilegal. Poucos tem títulos da terra ou da propriedade, seja urbana ou rural. A literatura em favor de legalização é ampla indo de Ronald Coase a Hernando de Soto e Douglass North.

Vocês mesmo argumentam que a maior parte da área desmatada é improdutiva. Têm razão. Diria que um dos motivos é que essas áreas foram desmatadas irregularmente e agora se encontram em imbróglios legais que nunca serão resolvidos. Nem que se quisesse fazer reflorestamento ali, seria legalmente possível.

Apenas transformando a Amazônia em um campo de legalidade é que conseguiremos avançar e desincentivar o desmatamento. Em Manaus, por exemplo, existe madeira legal e ilegal a venda. O m3 de madeira legal custa aproximadamente R$ 700; de madeira ilegal, R$ 100. Surpreendentemente, madeira legal é rara e ilegal é abundante. Por que? Na minha opinião, a razão é a incrível dificuldade para um empresário local se legalizar. Ajo como investidor-anjo em diversas atividades como piscicultura e manejo florestal; em geral o capital se esvai na espera pela legalização. Apenas como exemplo recente, proibiu-se (Ministério Público e Justiça Federal) toda movimentação de madeira legal nos principais municípios que são rota de madeira (legal ou ilegal). Isso está tendo um impacto demolidor nos poucos operadores legais na região. Certamente não tem impacto sobre quem já era ilegal. Mais um tiro no pé.

É preciso profunda reflexão e conhecimento para repensar esse modelo. Caso contrário, em 2007 enviamos as FFAA à Amazônia, em 2020 de novo e provavelmente em 2033 o faremos novamente.

Perdão pelo longo texto. O tema me é querido. Meu velho avô, Prof Samuel Benchimol, um estudioso da região, transmitiu ao meu DNA a indignação regional contra a pobreza e a destruição. Espero ao menos tê-los parcialmente convencido de que propostas têm de ser condizente com os “facts on the ground”.  Estou à disposição para discutir o tema e renovo meus votos de que vocês continuem sendo lideranças no Brasil que tanto nos orgulham.

Abraços,

Denis Benchimol Minev

[email protected]

* Denis Minev é diretor presidente do grupo Bemol e Young Global Leader do Fórum Econômico Mundial.

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