não podemos voltar ao normal
Retomada verde e inclusiva: “Não podemos voltar à normalidade. O antigo normal nos trouxe não apenas ao caos pandêmico, mas também à crise financeira e à crise climática.” (Mariana Mazzucato)

 

 

 

 

(Retomada verde e inclusiva) A grave crise sanitária que assola o mundo e que reverbera no Brasil com mais de 120 mil mortos e 3,7 milhões de infectados, tem o dom de expor de modo dramático a chaga mais profunda da nação: a abissal desigualdade social existente no país. A crise desnuda o abandono de milhões de desempregados e trabalhadores informais, desassistidos de quaisquer políticas sociais e econômicas, além de expor a olho nu as péssimas condições sanitárias das populações das comunidades e periferias que têm acesso limitado à água, ao saneamento, e que vive em precárias condições de higiene e habitação. 

Situação agravada pela atuação errática do governo federal que, em meio à pandemia, tem sistematicamente se colocado contra as orientações das autoridades de saúde do Brasil e mundiais, causando desorientação em parte da população e enfraquecendo ações de combate à doença. O que tem ampliado as consequências da pandemia, atrasado sua reversão e agravado a grave crise econômica dela decorrente. 

De forma geral, o mundo começa a sair da crise da COVID-19 para cair no que poderá ser uma das piores recessões da história. A taxa de desemprego nos EUA em maio chegou a 13% – em três meses de pandemia, mais americanos perderam seu trabalho do que em dois anos da Grande Depressão. Na Europa, o encolhimento projetado para 2020 é de 8,7%. Na China, a queda no primeiro trimestre de 2020 foi de 6,8%. No Brasil, onde a má atuação do governo provavelmente postergou o sonhado “achatamento da curva”, as projeções mais otimistas apontam para uma retração do PIB da ordem de 6% a 9%, a maior em pelo menos 58 anos. A economia global deve encolher cerca de 6%, o que se compara apenas a momentos como a Grande Depressão, a Primeira Guerra Mundial e o final da Segunda Guerra.

Ironicamente, e pelo pior motivo possível, a pandemia também abre a oportunidade inédita de atacar a maior crise crônica da humanidade: a crise climática. O colapso econômico também derrubou as emissões de gases de efeito estufa do mundo. Estas devem cair cerca de 6% em 2020, a maior redução desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Mas para que o mundo tenha chance de estabilizar o aquecimento global em 1,5°C, como preconiza o Acordo de Paris, a ciência estabelece que entre 2020 e 2030 as emissões precisam cair cerca de 7,6% por ano. Ou seja, se mantidos os rumos da economia como ela é hoje, seria preciso pelo menos uma catástrofe do porte da pandemia da COVID-19 anualmente pelos próximos dez anos para evitar os piores efeitos das mudanças do clima. Evidentemente isso não é uma opção.

Não resolver a crise do clima tampouco é uma opção. O mundo já aqueceu cerca de 1,1oC desde a era pré-industrial e os prejuízos econômicos e sociais decorrentes de um aquecimento fora de controle são difíceis de calcular. Apenas um evento extremo em 2017, o furacão Harvey, causou US$ 125 bilhões em perdas. No Brasil, segundo um dos poucos estudos disponíveis, três tipos de evento extremo (movimentos de massa, inundações e enxurradas) custaram até 0,87% do PIB (R$ 355,6 bilhões) entre 2002 e 2012. Ao forçar deslocamentos em massa e fome, e ao agravar carências de desenvolvimento dos países pobres, a mudança do clima também pode facilitar a emergência ou a reemergência de agentes infecciosos – podendo, portanto, ser um gatilho importante das próximas pandemias.

O modelo econômico vigente no mundo desde o século 19, se conduziu por um lado a melhorias na expectativa de vida e nos níveis gerais de prosperidade, por outro nos legou a crise climática e produziu degradação ambiental, exclusão social e desigualdade maciças que tornaram grandes partes do planeta berçários perfeitos para novas pandemias. Hoje, o conjunto dos 10 maiores bilionários do mundo têm ativos maiores que o PIB de países como a Suíça, Taiwan e Bélgica. E somente seis brasileiros têm uma riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões mais pobres do país.

Líderes de economias capitalistas avançadas já olham para o pós-pandemia como a oportunidade de solucionar a crise climática e, ao mesmo tempo, ajudar na recuperação econômica, ao fomentar negócios e setores emergentes que hoje são vitimados por uma competição desleal com as velhas indústrias – como os combustíveis fósseis, subsidiados em US$ 5 trilhões por ano. A União Europeia apresentou em maio o rascunho do seu Green Deal, um pacote de estímulo à recuperação verde que tem como meta levar o bloco à neutralidade de carbono em 2050. Nos Estados Unidos, setores do Partido Democrata propuseram o Green New Deal, uma resolução do Congresso que inclui um imposto sobre o carbono, investimentos públicos e uma transição para um sistema energético 100% renovável. O potencial de geração de empregos desses setores é imenso: apenas a energia solar, segundo dados da Absolar, gera 30 empregos por megawatt instalado, contra 2,6 empregos de grandes hidrelétricas, como Belo Monte, e menos de 1 emprego em termelétricas a gás. Empregos verdes também tendem a ser melhor remunerados.

Os Green Deals, porém, ainda não estão escritos em pedra. O tamanho do tombo da economia tradicional também tem vindo acompanhado de pacotes igualmente grandes de socorro às velhas indústrias. Somente os EUA destinaram US$ 25 bilhões para socorrer companhias aéreas vitimadas pela pandemia. Esta indústria foi socorrida globalmente até agora com US$ 85 bilhões. O futuro do Green New Deal nos EUA dependerá do resultado da eleição presidencial de novembro de 2020.

No Brasil, que não consegue nem mesmo ainda divisar o fim da pandemia, a discussão sobre retomada sustentável, ou retomada verde inclusiva, não está nem sequer colocada. Ela passa à margem do planejamento da equipe econômica do governo federal, que aposta na fórmula de reformas, redução do tamanho e do alcance do Estado e teto de gastos como instrumentos para sair da crise. Ao mesmo tempo, pressões da economia tradicional põem na agenda mais facilidades para setores como o de infraestrutura, extrativo mineral e óleo e gás – seja na forma de incentivos diretos ou desregulação. Estamos na contramão, discutindo a liberação do garimpo e da mineração em Terras Indígenas e a virtual eliminação do licenciamento ambiental quando deveríamos falar de um Green Deal brasileiro.

“A necessidade de fomentar ações para ativar o emprego e a geração de renda cria uma oportunidade única para a adoção de soluções sustentáveis como elemento dinamizador da economia”, diz o economista Carlos Eduardo Young, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A pandemia trouxe de volta aos planejadores econômicos dos países centrais a perspectiva Keynesiana, na qual o gasto público deixa de ser anátema execrado para ser indutor de crescimento. “Se eu tenho gasto, eu tenho meio de renda desde que haja mão-de-obra sobressalente. E o que mais temos aqui é mão-de-obra sobrando. Se aumentar o gasto com meio ambiente, vai aumentar o emprego e a qualidade ambiental”, prossegue Young.

Nesse mundo, o Estado deixa de ser simplesmente um corretor de falhas de mercado para ser um promotor ativo dos interesses da sociedade no mercado.

O Estado deve garantir que parcerias entre governo e setor privado – por exemplo, no resgate de empresas – sejam pautadas pelo interesse público. A tributação deve ter como pilar central a internalização dos custos sociais das ações privadas (princípio do poluidor- pagador), por meio da taxação de poluentes e atividades predatórias, como a produção agropecuária em áreas recém desmatadas.

Princípios esses que precisam constar da proposta de reforma tributária ora em discussão no Congresso Nacional.

O Brasil precisa de uma retomada econômica verde e inclusiva que seja real e não apenas mais um voo de galinha. Que aproveite as vantagens comparativas do país – seus capitais humano e natural, sua pós-graduação e seu parque industrial – e aumente a resiliência da nossa sociedade a crises futuras e aos efeitos das mudanças do clima. Que seja inclusiva e reduza as desigualdades, o déficit de serviços públicos, como do saneamento, que seja sustentável e que reduza as emissões de gases de efeito estufa do país.

Para isso, antes de mais nada, é necessário cortar os subsídios aos combustíveis fósseis e promover ações para zerar o desmatamento. Além disso, é necessário que os recursos públicos, dinheiro de toda a população, não sejam direcionados ao salvamento de empresas fósseis ou à implantação de infraestruturas que sigam impulsionando a antiga economia e que nos amarrem a um futuro de altas emissões de carbono. Queremos que os recursos públicos sejam investidos nos pagadores de impostos, nas reais necessidades das pessoas, na geração de empregos nas indústrias do presente, não do passado, e em ciência, tecnologia e inovação – únicos elementos capazes de produzir crescimento econômico duradouro e de longo prazo e nos aproximar do mundo desenvolvido.

Diante do vácuo de liderança e de ideias deixado pelo Poder Executivo federal, cabe às demais esferas de poder federal, aos governos subnacionais e à sociedade desenhar a retomada que precisamos. As redes de organizações da sociedade civil Observatório do Clima e GT Infraestrutura apresentam aqui um singelo grupo de propostas que visa exemplificar o que entendemos por uma retomada da economia verde e inclusiva. Foram trabalhadas ideias e propostas nas áreas de saneamento e resíduos sólidos, habitação popular, mobilidade urbana, energia solar em habitações de baixa renda, eficiência energética, agricultura de baixo carbono e recuperação de bacias hidrográficas.

As ideias e propostas aqui apresentadas não têm a pretensão de esgotar as alternativas e possibilidades, mas temos certeza que são de interesse da do Brasil e da grande maioria da população brasileira.

Leia mais sobre a Retomada Verde Inclusiva:

Agricultura de baixo carbono: recuperar 6,5 milhões de hectares de pastagens degradadas no Cerrado pode injetar R$ 3,4 bilhões na economia

Água e saneamento: cumprir a meta do Plansab permite gera 300 mil empregos ainda este ano

Eficiência energética: meta do Acordo de Paris leva à geração de quase meio milhão de empregos até 2030

Energia solar distribuída: investir em em residências de baixa renda é solução econômica, ambiental e social

Habitação: um terço do déficit habitacional do Brasil está concentrado em nove regiões metropolitanas 

Mobilidade: soluções impostas pela pandemia vieram para ficar

Resíduos sólidos: como o Brasil joga fora meio milhão de empregos

Resíduos Sólidos, Saneamento, Mobilidade e Energia solar: os setores-chave para uma retomada verde da economia

Soluções baseadas na natureza: cumprir meta do Acordo de Paris geraria 250 mil empregos

Retomada verde pode evitar metade do aquecimento global previsto até 2050 (matéria de Giovana Girardi para o Estadão)

ClimaInfo, 3 de setembro 2020.

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#RetomadaVerdeInclusiva 

 

 

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