A política de terras no Brasil – Regularização Fundiária

Regularização fundiária

A política de terras no Brasil passou por vários momentos em nossa história, com problemas que se mantém ao longo do tempo. No começo da colonização, a terra pertencia à Coroa e era entregue às pessoas, basicamente com o objetivo de povoamento. Dessa época são diversas as tentativas de regulamentação dessa posse, dificultadas pela distância da metrópole, pela ausência de demarcações confiáveis e pelo tamanho do território.

Da independência (1822) até 1850, não havia nenhuma regulação dobre as terras públicas, o que gerou posses descontroladas. Ressalte-se que toda a estrutura fundiária do Brasil foi, de uma forma ou outra, fundada sobre o regime de escravidão. É importante destacar isso, uma vez que a visão patrimonialista e escravocrata permeia, até hoje, as diferentes tentativas de apropriação de terras públicas. Não é possível, em função do objetivo desta nota técnica, ampliar todos esses temas.

Apenas em 1850 foi aprovada a Lei de Terras, regulamentada em 1854, com os objetivos de: ordenar a apropriação territorial no Brasil; acabar com a posse; fazer um cadastro de terras; financiar a imigração; criar um setor agrícola de pequenos proprietários; tornar a terra uma garantia confiável para empréstimos e funcionar como um chamariz para a imigração.

Essa Lei sofreu enorme resistência dos grandes proprietários, que se recusavam a demarcar as suas terras. O Estado não tinha força suficiente para impor as medidas, de modo que os vários objetivos estabelecidos não foram atingidos. Em especial, a Lei não freou a posse irregular da terra. Tampouco organizou cadastro de terras, nem particulares nem devolutas e, principalmente, não alterou a forma de apropriação das terras: grandes latifúndios, terra como reserva de valor, agricultura itinerante e limites fluidos entre propriedades.

Diferentes governos buscaram formas de regularizar a ocupação das terras públicas, com pouco ou nenhum efeito.

Nem mesmo o Estatuto da Terra, de 1964, que preconiza a reforma agrária, o uso social da propriedade e a “proteção dos recursos naturais renováveis” (algo inédito na época), conseguiu alterar a estrutura de posse e uso da terra. Considerando que foi uma Lei instituída em plena ditadura, com um governo de força, é fácil deduzir que leis, apenas, são incapazes de resolver uma dinâmica construída ao longo de mais de quatro séculos.

Em 2009 foi criado, pela Lei 11.952, o Programa Terra Legal Amazônia, com o objetivo de fazer a regularização fundiária das terras públicas federais não destinadas na Amazônia Legal. A meta do programa, em sua origem, era beneficiar cerca de 150 mil posseiros, numa área total de 67,4 milhões de hectares, com valor de mercado estimado em R$ 61,7 bilhões em terra nua. Entretanto, auditoria do Tribunal de Contas da União realizada em 2015, avaliou o resultado do Programa de 2009 até 2014.

A avaliação resultou no Acórdão: 627/2015 – TCU – Plenário, que demonstra a pouca efetividade do programa, desde o descumprimento de cláusulas legais até a falta de controle interno dos processos. .1 Mais uma vez, uma lei bastante razoável e um programa governamental que prioriza com regras mais flexíveis as pequenas ocupações não obtiveram os efeitos desejados.

No momento, há, em tramitação no Congresso Nacional, vários Projetos de Lei que tratam do assunto como primeiro objeto ou como tema acessório de outros assuntos. Os dois principais são, na prática, oriundos da Medida Provisória 910/2019, foram gerados por decorrência do seu debate. Essa MP perdeu a validade em 21/05/2020. Um dos projetos é do Deputado Zé Silva, que havia sido designado relator da Medida Provisória. O outro, do Senador Irajá, é cópia do relatório feito por ele sobre a MP no âmbito da Comissão do Congresso Nacional em dezembro de 2019

É importante mencionar que a Frente Parlamentar da Agricultura – FPA está veiculando mensagens falsas, buscando apoio da sociedade, para a aprovação desses projetos22. Entre várias afirmações mentirosas, a Frente diz que, sem a aprovação desses projetos, não será possível a regularização fundiária de pequenos proprietários. Essa informação é FALSA. A Lei n.° 11.952/2009, hoje em vigor, já contempla todos os instrumentos e mecanismos necessários a essas regularizações.

Esses são os dois projetos mais próximos de serem votados. Ambos merecem a denominação, dada por várias organizações da sociedade civil, de “PLs da Grilagem”.

Abaixo seguem alguns pontos que merecem atenção, em ambos os projetos:

As propostas alteram a Lei n° 11.952 de 2009, inicialmente restrita à Amazônia Legal. A Lei 13.465, de 2017, permitiu a inclusão de áreas urbanas e rurais do Incra, mesmo fora da Amazônia Legal, desde que os projetos de colonização sejam anteriores a 10 de outubro de 1985. Pelos projetos em análise, a possibilidade de regularização passe a abranger o país todo. Ou seja, passa a premiar com regras mais flexíveis a ocupação irregular, muitas vezes associada à destruição ambiental, em todos os biomas.

As propostas permitem a regularização por meio de autodeclaração, baseada na inscrição no Cadastro Ambiental Rural (CAR), sem vistoria para a comprovação efetiva das informações. Em muitos imóveis cadastrados (cadastros não verificados), existe sobreposição de áreas. Ou seja, a medida, em vez de resolver conflitos, vai aumentá-los. No projeto do Senador Irajá Abreu, mesmo os que já são proprietários rurais podem requerer a regularização fundiária, desde que a soma das propriedades e áreas a serem regularizadas não ultrapasse os 2.500 hectares.

Em função da importância e dos impactos das propostas, a via mais prudente de tramitação é a avaliação pelas comissões, não a votação direta em Plenário. O Plenário nesses processos tenderá a gerar emendas facilitando ainda mais a regularização e, em vários casos, a consolidação de grilagem.

A ocupação irregular de terras públicas é responsável por grande parte do desmatamento e incêndios na Amazônia. Ou seja, as propostas premiam os infratores ambientais.

As benfeitorias realizadas na terra, assim consideradas, mesmo as resultantes de infração ambiental, tenderão a ser indenizadas, no PLS 510/21. Mais um prêmio aos infratores.

Entre as análises feitas sobre o problema da regularização de terras, em especial na Amazônia, destaca-se o trabalho apresentado pelo IMAZON, que pode ser acessado aqui:

Um tópico abordado pelo IMAZON, nesse e em outras publicações, chama atenção: caso as terras públicas devolutas forem regularizadas como médios e grandes imóveis, o prejuízo para a sociedade brasileira será em torno de 118 bilhões de reais.

Qual é a gravidade dessa informação? A terra da União constitui bem público. Assim, se a regularização ocorrer de forma flexível, como um rolo compressor, sem avaliação de quem realmente tem direito de ser titulado, a sociedade, como um todo, pagará para que ocupantes ilegítimos sejam beneficiados. Isso também inclui infratores ambientais.

Funciona como se alguém roubasse um banco, fugisse com o dinheiro e pudesse, com o conhecimento de todos, permanecer em liberdade, usufruindo do produto do crime.

Cabe enfatizar que, caso prospere qualquer uma das duas propostas, essa situação se estenderá por todo o país.

Os interessados na aprovação dessas matérias são a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), a Frente Parlamentar da Agricultura (FPA), os grandes latifundiários e exportadores de grãos.

Não há, até agora, propostas legislativas alternativas mais adequadas do ponto de vista social e ambiental. O mais recomendado é a permanência da legislação atualmente em vigor, que é suficiente para realizar as regularizações que forem devidas e que já prevê processo simplificado para os ocupantes de pequenas áreas.

Cabe repetir, aqui, o referido na primeira parte desse texto: Nem a lei promulgada durante um período de exceção foi capaz de implementar, de fato, uma proposta fundiária adequada para o país.

Todas as vezes que uma Lei foi aprovada no Congresso para “dirimir conflitos fundiários”, o número de invasões aumentou, assim como o de assassinatos de pequenos proprietários, desmatamento e incêndios.

É evidente que essas propostas não devem ser aprovadas, mas a alternativa a elas deve ser construída de modo a compor uma política fundiária e agrícola, onde haja de fato a priorização da agricultura familiar e extrativismo, pagamento por serviços ambientais, facilidade de crédito e assistência técnica para pequenos proprietários, incentivo à preservação do meio ambiente e investimento em bioeconomia. Não é possível, a nosso ver, limitar esse tema a uma proposta legislativa voltada exclusivamente a viabilizar a titulação sem critérios consistentes, mesmo porque a história mostra que, a cada emenda, fica pior o soneto.

1 Ver: https://portal.tcu.gov.br/biblioteca-digital/auditoria-de-conformidade-no-programa-terra- legal.htm. Acesso em: 23 mar. 2021.

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ClimaInfo, 28 de abril de 2021.

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