O que o documentário “Rompendo Barreiras: Nosso Planeta”, da Netflix, traz sobre as preocupações com o desmatamento da Amazônia. E como o licenciamento ambiental “anorexizado” pode romper barreiras irrecuperáveis.
A Netflix acaba de lançar o documentário Rompendo Barreiras: Nosso Planeta (Breaking Boundaries), de Johan Rockström e David Attenborough, sobre como a humanidade levou a Terra para além dos limites que a mantiveram estável por 10 mil anos, desde o início da civilização. O documentário mostra quão perto estamos de alguns pontos de ruptura (tipping points). Fala também da necessidade que se apresenta à humanidade de engajamento numa transição que seria impensável há poucas décadas.
Os limites do desmatamento da Amazônia e das florestas tropicais
Dois desses limites – o da perda de biodiversidade e o da mudança climática – têm relação direta com o desmatamento das florestas tropicais.
As florestas tropicais abrigam a maior biodiversidade terrestre e fluvial do planeta. O atual ritmo de desmatamento destas florestas é responsável por aproximadamente 20% das emissões globais de gases de efeito estufa. Estes gases são assim chamados por segurarem calor na atmosfera. No Brasil, as emissões geradas pelo desmatamento são 45%1 do total de emissões do país. Só o desmatamento da Amazônia é responsável por 36%. A destruição piora o aquecimento global e acelera a extinção de espécies.
Em um trabalho já clássico, o climatólogo Carlos Nobre e o biólogo Thomas Lovejoy sugerem que a Amazônia ruma rapidamente para o rompimento de seu limite. Este rompimento fará com que partes da floresta passem a se transformar em áreas degradadas, vastos campos sujos.
Isto ocorreria porque o equilíbrio da floresta Amazônica é fruto de uma delicada, mas massiva corrente de transporte de água. Esta corrente nasce no Oceano Atlântico e chega aos Andes, onde dobra em direção ao sul. A corrente não é linear, mas sim composta por sucessivos ciclos de chuva e evapotranspiração da floresta. Remover as árvores enfraquece, portanto, a corrente. Uma quantidade menor de água circulando na região, por sua vez, é fatal para o tamanho da floresta. Espécies arbóreas menores e menos sedentas tomam o lugar do grande emaranhado de árvores e espécies simbióticas.
Nobre e Lovejoy estimam que o ponto de ruptura deve acontecer quando a floresta perder entre 20% e 25% da sua cobertura original. Mas em que ponto estamos neste processo? A parte brasileira do bioma Amazônico ocupava no tempo das caravelas portuguesas uma área de quase 4,2 milhões de km2. Segundo o INPE2, 17% do bioma já foi perdido. Nobre, no entanto, acredita que a perda está mais próxima dos 20%. Isto porque ele considera no cálculo as áreas severamente degradadas e aquelas onde a floresta está se recuperando (embora sem a riqueza anterior).
Antes de falar mais de alguns processos que podem nos levar a ultrapassar este limite, vale lembrar que, entre 2004 e 2012, foi possível reduzir o desmatamento anual em mais de 20 mil km2. Isto mostra que é possível frear a destruição. Se uma ação assemelhada às daquele período se somasse a programas de restauração florestal em escala, a floresta voltaria a fixar muito carbono. E criaria as condições para o reestabelecimento de sua biodiversidade.
Rompendo limites com a “Anorexização” do Licenciamento Ambiental
Nos últimos anos, o desmatamento da Amazônia voltou a crescer seguidamente.
O sinistro do meio ambiente, Ricardo Salles, cunhou a expressão “passar a boiada” para a destruição dos regramentos infralegais que vem fazendo com uma terrível competência. O Congresso, agora presidido por aliados de Bolsonaro, está fazendo passar a boiada legal com consequências ainda mais danosas. Se aprovadas, a combinação de três projetos de lei pode fazer a Floresta Amazônica ultrapassar seu ponto sem volta e se tornar um imenso campo sujo.
Para sabermos mais sobre os Projetos de Lei que ameaçam a preservação ambiental do país, a Agência Lupa e o Fakebook.eco prepararam um material explicando quatro propostas que tramitam no Congresso e por que elas são tão perigosas para o avanço do desmatamento da Amazônia.
Duas delas são o Projeto de Lei que “anorexiza” o licenciamento ambiental e o PL da Grilagem. Este último acaba por incentivar a ocupação ilegal de grandes glebas de Terras Públicas. Se aprovados, estes dois PLs imporão uma sentença de morte para parte importante da floresta ao sul do rio Amazonas.
Em sua versão atual, o PL do licenciamento dispensa, por exemplo, a licença ambiental para ampliação e melhoria de estradas. Esta é uma receita historicamente comprovada para o aumento do desmatamento. Muitas das estradas na Amazônia, existentes e projetadas, estão cercadas por Terras Públicas. Uma vez implantadas ou melhoradas as estradas, entra em ação o “PL grilagem”, que permite a regularização autodeclarada de até 2.500 hectares. Este PL dá um sinal claro para a ocupação dessas terras públicas. Este processo tem implantado redes de estradas vicinais e ramais que, nas imagens de satélite, aparentam “espinhas de peixe”.
Uma olhada rápida na dinâmica de ocupação das áreas próximas a novas estradas indica que se desmata anualmente 2 km2 de floresta para cada quilômetro de estrada ampliada e/ou asfaltada3. Na lista de desejos por estradas do governo, estão o trecho de 850 km da BR 319 no estado do Amazonas, os 215 km que ligam Humaitá a Lábrea e o trecho final da BR 163 até Itaituba. São quase 1.400 km que – se as tendências históricas permanecerem – podem levar ao desmatamento de 83.000 km2 até 2050.
Outra intenção declarada e insistente do governo Bolsonaro é a de abrir as Terras Indígenas à mineração, o que por si só é um desastre irrecuperável, basta ver o lago formado onde era a cava de Serra Pelada. Porém, o PL também autoriza a construção de hidrelétricas sem a devida consulta aos Povos Indígenas. Junte isso com a “anorexização” do licenciamento ambiental e a lista de desejos do setor elétrico – poderemos ver mais 2.500 km2 de floresta ocupados por reservatórios4 de hidrelétricas.
Pensando que temos quase 30 anos até 2050, não estourar esse orçamento representa conter os desmatamentos ilegal e legal em menos de 4.000 km2 por ano. Um valor nunca antes visto nos registros deste país. E governo federal e Congresso ainda querem mexer na demarcação de terras indígenas.
As boiadas podem vir a deixar de ser somente figura de linguagem. Os vastos campos sujos em um solo sabidamente pobre, como o de muitas regiões da Amazônia, oferecem pouca oportunidade alternativas à engorda de gado em pastos degradados. Se ainda houver mercado consumidor de carne bovina.
Somando o nível de destruição que já foi causado à Amazônia com os 85 mil km2 provocados pelas possíveis novas leis e levando em conta que temos quase 30 anos até 2050, não ultrapassar o ponto de não retorno significa conter os desmatamentos ilegal e legal em menos de 4.000 km2 por ano. Isso é mais ou menos um terço do que foi desmatado em 2020. É um valor nunca antes visto nos registros deste país – e praticamente impossível na rota que o atual governo está seguindo.
E governo federal e Congresso ainda querem mexer na demarcação de terras indígenas…
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1 http://plataforma.seeg.eco.br/total_emission#
2 Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais: http://www.inpe.br/faq/index.php?pai=6
3 Ao longo do trecho paraense da BR-163, entre Castelo dos Sonhos e Jardim de Ouro, entre os anos de 2000 e 2019, esta taxa foi de 2,9 km2/ano/km. A expansão da BR-364, entre Porto Velho e Rio Branco, também entre 2000 e 2019 está associada a um desmatamento de 1,0 km2/ano/km. Essa estimativa pode estar subestimada. A ocupação de Rondônia com o asfaltamento da BR 364 entre Cuiabá e Porto Velho nos 40 anos entre 1980 e 2019 levou o estado a perder 120 mil km2 de floresta, metade da área do estado. Isso corresponde a uma taxa pouco mais de 4 km2/ano por km de estrada.
4 Esta área corresponde aos lagos dos projetos das usinas de Tabajara, Castanheira, Bem Querer e do Complexo do Tapajós. Há outras, como a de Marabá, que ficaram de fora desta conta, por estarem fora da área da floresta propriamente dita ou por serem consideradas pouco prováveis de serem viabilizadas no horizonte de 30 anos.
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ClimaInfo, 4 de junho de 2021.
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