Os impactos das mudanças climáticas são o tema de um novo relatório do IPCC*, o painel científico que assessora a ONU na questão climática
A principal mensagem do relatório do IPCC – o painel cientifico para o clima da ONU – lançado hoje (28/2) diz que, durante as próximas duas décadas, as sociedades humanas enfrentarão uma série de riscos climáticos inevitáveis provocados pelo aquecimento global de 1,5°C. Esta mensagem é seguida por um forte alerta: mesmo se excedido por pouco tempo, este nível de aquecimento gerará impactos adicionais severos, alguns dos quais serão irreversíveis.
Mas os problemas não estão só no futuro, já recaem hoje sobre as sociedades. Como diz um comentário do Observatório do Clima sobre o relatório, “Os impactos da mudança climática causada por seres humanos já provocaram perdas e danos para pessoas e ecossistemas. Metade da população mundial já vive sob risco climático, e os impactos são mais graves entre populações urbanas marginalizadas, como os moradores de favelas. Nas regiões mais vulneráveis, o número de mortes por secas, enchentes e tempestades foi 15 vezes maior na última década do que nas regiões menos vulneráveis.”
A verdade é que toda a humanidade está em mares revoltos, mas alguns seguem de iate ou transatlântico, enquanto outros mal têm uma pedaço de isopor para se manterem vivos. A vulnerabilidade dos mais pobres aos impactos das mudanças climáticas “tem cor, raça, gênero, etnia e geografia”, disse ao Observatório do Clima uma das autoras do relatório, a brasileira Patrícia Pinho, do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia).
Apresentamos a seguir uma seleção das revelações do relatório para o Brasil.
1. O calor e a umidade ultrapassarão os limites da sobrevivência, se a humanidade não for capaz de fazer a necessária redução das emissões de gases de efeito estufa
O calor e a umidade ultrapassarão a tolerância humana em todo o mundo se as emissões não forem reduzidas. E o Brasil está entre os países que, neste cenário, vivenciariam condições cada vez mais perigosas.
O relatório do IPCC toma como base a temperatura de bulbo úmido, uma medida que combina calor e umidade [Ch 10, p.43]. 31°C já é uma temperatura do bulbo extremamente perigosa para os seres humanos. A situação passa a ser insuportável se a temperatura de bulbo chegar a 35°C por aproximadamente mais de seis horas. E isto até para adultos em forma e saudáveis à sombra. Mesmo abaixo destes níveis, o calor pode ser mortal, especialmente para pessoas idosas ou jovens, ou ainda para aquelas que fazem trabalho braçal ao ar livre.
Se as emissões forem reduzidas apenas no ritmo atualmente prometido pelos governos junto ao Acordo de Paris, grande parte da região amazônica experimentará de 1 a 12 dias por ano com a temperatura de bulbo de 32°C, de acordo com um estudo citado pelo relatório do IPCC [Ch 9, p.52]. Ainda segundo o mesmo estudo, se as emissões forem altas, a maior parte do Brasil experimentará temperaturas de bulbo de 32°C por pelo menos um dia por ano. Sendo que algumas partes do Norte e do Centro-Oeste do Brasil estariam sujeitas a estas condições perigosas por até 30 dias por ano. Algumas partes do Nordeste poderiam atingir valores fatais de 35°C.
Se as emissões continuarem a aumentar, as mortes por calor no Brasil aumentarão em 3% até 2050 e em 8% até 2090, de acordo com um estudo citado pelo relatório. Isto poderia ser reduzido a um aumento de 2% se as emissões forem rapidamente reduzidas [Ch 10, p.71]. Considerando o efeito ilha de calor urbano, os habitantes das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo serão particularmente expostos a níveis perigosos de temperatura de bulbo [Ch.12, p.31-32].
2. Secas e enchentes devastarão as casas e os meios de subsistência no Brasil se governos e empresas não cortarem radicalmente as emissões de gases de efeito estufa
A seca já é uma ameaça crescente em algumas partes do Brasil. As áreas do Nordestes sujeitas à seca, por exemplo, aumentaram em 65% no período 2010-2019 em comparação a 1950-1059. Para o futuro, espera-se que os impactos das mudanças climática impulsionem ainda mais aumentos nas secas [Ch.12 p.28]: prevê-se que as chuvas diminuam em 22% no Nordeste ao longo deste século se as emissões forem elevadas [Ch.12 p.11]. As secas se tornarão mais frequentes e afetarão também áreas maiores no sul da Amazônia [Ch.12, p.21]. Até 2100, o aquecimento pode reduzir em 27% a vazão na bacia do Tapajós e em 53% na bacia do Araguaia-Tocantins [Ch.12, p.26].
Como resultado dessas mudanças, e acrescidos o desmatamento e os impactos diretos do maior calor, metade da floresta tropical amazônica poderia se transformar em pastagens secas se as emissões continuarem a aumentar, com consequências devastadoras [Ch.2 p.89]. A transformação da floresta tropical amazônica em pastagens secas poderia causar reduções da precipitação de 40% e quebrar a circulação de monção sul-americana [CCP7 p.15].
Ao mesmo tempo em que se projeta a diminuição da pluviosidade geral em grande parte do Brasil, deve aumentar o número de eventos de chuvas extremas, o que implica aumento na probabilidade de enchentes e deslizamentos de terra [Ch 12, pp.20, 21, 24 & 28]. Acre, Rondônia, Sul do Amazonas e Pará são os estados e regiões que mais devem sofrer com o aumento do risco de inundações mais frequentes e extremas [Ch.12, p.27]. Mesmo com cortes rápidos de emissões, a população afetada pelas enchentes no Brasil deverá dobrar ou até triplicar [Ch.12 p.5].
3. A produção de alimentos será afetada pelas mudanças climáticas
Em todo o mundo, altas temperaturas e eventos climáticos extremos como secas, ondas de calor e enchentes já prejudicam a produção de alimentos [Ch 5, p.14-15]. O relatório do IPCC sugere que estes fatores prejudicarão ainda mais a agricultura no Brasil se as temperaturas continuarem a subir [Ch 12, p.11]. A produção de arroz poderia cair em 6% com altas emissões, ou 3% com cortes rápidos de emissões. A produção de trigo poderia cair 21% com altas emissões ou 5% com cortes rápidos de emissões. E a de milho em 10% com altas emissões ou 6% com cortes rápidos de emissões. Isto tudo segundo um estudo citado pelo relatório [Ch 13, p.57].
Estas projeções podem estar subestimadas. De acordo com outro estudo citado pelo relatório [Ch 12, p.26], a produção de milho poderia cair em até 71% até o final do século no Cerrado se as emissões continuarem a aumentar; ou 38% se as emissões fossem reduzidas, mas apenas se tão rapidamente quanto as ciência atual exige. A combinação do aumento continuado de emissões de gases de efeito estufa com o desmatamento local poder causar uma queda de 33% na produção de soja e na das pastagens na Amazônia Legal, de acordo com mais um estudo citado no relatório [Ch 12, p.26].
O estresse causado pelo calor também pode reduzir o crescimento animal e a produção de leite e ovos, além de aumentar a mortalidade de animais. Atualmente, o gado é raramente sujeito a estresse térmico extremo na maior parte do Brasil. Mas se as emissões continuarem a aumentar, tanto o gado quanto a as aves de granja enfrentarão estresse térmico durante a maior parte – ou todo – o ano em grande parte do país. Os suínos, por sua vez, enfrentarão estresse térmico durante a maior parte – ou todo o ano – em algumas partes do país. Já se as emissões forem reduzidas rapidamente, o gado e as galinhas enfrentarão estresse térmico em alguns locais por muito menos de um terço do ano, enquanto os suínos enfrentarão baixo estresse térmico [Ch.5, p.50].
Os impactos das mudanças climáticas também prejudicarão a pesca e a aquicultura no Brasil. Se as emissões seguirem altas, a produção de peixes cairá em 36% no período 2050-2070 em comparação com 2030-2050. A produção de crustáceos e moluscos será quase que extinta, diminuindo em 97% no mesmo período, de acordo com um estudo citado pelo relatório [Ch 10, p.47].
4. O Brasil enfrentará graves prejuízos econômicos se as emissões nacionais e globais não forem reduzidas rapidamente.
O PIB per capita do Brasil já é menor em cerca de 13,5% do que seria sem o aquecimento causado pelas atividades humanas desde 1991, segundo um estudo citado pelo relatório do IPCC [Ch 16, p.22]. O Brasil é um dos países mais prejudicados economicamente pela crise climática, com cada tonelada de dióxido de carbono emitida globalmente custando ao país cerca de US$ 24 devido aos impactos das mudanças climáticas, de acordo com um estudo citado pelo relatório do IPCC [Ch 16, p.116]. Vale lembrar aqui que, em 2021, o mundo emitiu 36,4 bilhões de toneladas de dióxido de carbono.
O aquecimento contínuo prejudicará ainda mais a economia do Brasil se as emissões nacionais e globais não forem eliminadas rapidamente. O calor reduzirá a capacidade de trabalho, particularmente na agricultura, onde esta cairá 24% se as emissões aumentarem rapidamente, ou 9% se as emissões forem reduzidas rapidamente, segundo um estudo citado pelo relatório [Ch 13, p.57]. O efeito global da continuidade das altas emissões poderia ser a redução da renda média global em 23%, com renda média no Brasil 83% menor em 2100 do que seria sem a crise climática, de acordo com um estudo citado pelo IPCC [CCP4, p.22].
5. O Brasil será atingido pelos efeitos de eventos extremos que acontecem em outros lugares
Enquanto o Brasil será atingido pelos impactos das mudanças climáticas que ocorrem dentro de sua fronteira, também será profundamente afetado pelas consequências das mudanças que acontecem em outros partes do mundo.
Por exemplo, os impactos da crise climática atingirão as cadeias de abastecimento, os mercados, as finanças e o comércio globais, reduzindo assim a disponibilidade de bens no Brasil e aumentando seus preços, bem como prejudicando os mercados das exportações do país [Ch.11 p.74, Ch.16 p.40]. Os choques econômicos provocados pelos impactos das mudanças climáticas, incluindo a redução dos rendimentos agrícolas, os danos à infraestrutura crítica e os aumentos de preços das commodities, podem levar à instabilidade financeira [Ch.11 p.76].
Altos níveis de aquecimento poderiam causar um declínio do PIB global de 10 a 23% até o final do século, comparado a um mundo sem aquecimento [Ch.16, p.65]. Várias grandes economias poderiam ver declínios econômicos ainda maiores por causa da crise climática, com perdas do PIB até o final do século estimadas em até 42% na China e 92% na Índia, se as emissões forem altas, de acordo com estudo citado no relatório [Ch 16, p. 65].
Os impactos das mudanças climáticas já estão prejudicando as cadeias produtivas. Por exemplo, as inundações que ocorreram na Tailândia em 2011 atingiram a produção de semicondutores, fazendo com que a produção industrial global caísse 2,5% e os preços dos discos rígidos aumentassem entre 80 e 190% [Ch.16, p.41] (pesquisa não incluída no relatório do IPCC, descobriu que a crise climática tornou mais intensas as chuvas que causaram essas inundações). Este tipo de ruptura provavelmente se tornará mais comum, especialmente se as emissões forem altas, pois chuvas e tempestades mais fortes e a elevação do nível do mar levarão a mais inundações nos portos e outras infraestruturas costeiras críticas [Ch.3 p.126].
Em novembro de 2021, após a elaboração do relatório do IPCC, inundações no Canadá fecharam estradas e ferrovias, atrasando os embarques no Porto de Vancouver, de onde a maior parte das exportações de grãos do país é feita. Isto implicou retorno de navios à Ásia com contêineres vazios devido à falta de espaço para armazenar estes equipamentos, resultando em atrasos adicionais para as exportações do Canadá e impactando o transporte marítimo internacional.
O fornecimento internacional de alimentos também está sob ameaça. Os riscos de quebra generalizada nas colheitas devido a eventos extremos que atingem locais em todo o mundo aumentarão se as emissões não forem reduzidas rapidamente [Ch 5, p.32]. Isto poderia levar à escassez global de alimentos e ao aumento de preços, o que prejudicará particularmente as pessoas mais pobres e aumentará o risco de agitação social [Ch 16, p. 22].
Por exemplo, para o milho, a probabilidade de perda de 10% ou mais da safra em vários lugares do mundo em um mesmo ano aumenta para 86% se as emissões continuarem a aumentar – mas pode ser limitada a apenas 7% se as emissões forem reduzidas rapidamente [Ch. 5, p.32]. Ameaças ao abastecimento de alimentos e disponibilidade de água, devido à contínua mudança climática, podem aumentar o risco de agitação social e conflito armado, particularmente em países mais pobres, embora outros fatores também sejam importantes [Ch 16, p. 22].
* O relatório comentado neste texto foi produzido pelo Grupo de Trabalho 2 da 6a avaliação da crise climática feita peloo IPCC (AR6-WG2-IPCC). O Sumário para Formuladores de Políticas Públicas (SPM na sigla em inglês) deste relatório pode ser baixado neste link.
Saiba mais:
– Leia aqui um resumo em português do sumário do relatório para formuladores de política feito pelo Observatório do Clima.
– Mais: As principais mensagens do relatório Grupo de trabalho 1 da 6a avaliação do IPCC
– Mais: 1,5oC, as ações necessárias para o cumprimento da meta mais restrita do Acordo de Paris.
– Outros conteúdos sobre a crise climática no ClimaInfo.
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ClimaInfo, 28 de fevereiro de 2022.
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