Uma cidade que não combate o racismo ambiental age em prol da necropolítica

Por Tatiane Matheus*

Aos 24 anos, a pesquisadora júnior da Plataforma CIPÓ Gabrielle Alves de Paula participa de iniciativas de advocacy nas áreas de cooperação internacional, justiça racial, social e climática. Para ela, o racismo ambiental e climático se manifesta, por exemplo, na falta de saneamento e até de luz elétrica nas cidades. Gabrielle — que também  é integrante da Coalizão Clima de Mudança — afirma que “uma cidade que não combate o racismo ambiental age em prol da necropolítica e condena a sua juventude a essas vivências insalubres e inseguras com o meio urbano”.

A Plataforma CIPÓ, em parceria com o LabJaca, produziu uma série de vídeos e apresentou algumas iniciativas de combate às injustiças ambientais e climáticas nas comunidades. Os três vídeos mostram ações em favelas do Rio de Janeiro. Cientista social e estudante na Clínica de Direitos Humanos do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), Gabrielle é a primeira especialista entrevistada na série Racismo Ambiental Brasileiro, produzida pelo ClimaInfo, e traz reflexões sobre o assunto pela perspectiva dos municípios e dos estudos na CIPÓ: “a atual política urbana é racista”, enfatiza a especialista.

ClimaInfo: Como definir o racismo ambiental brasileiro? 

Gabrielle: Existem definições complementares para esse conceito. Eu me alinho ao entendimento de que o racismo ambiental é qualquer política, legislação ou prática que atue na reprodução segregada do espaço. Espaço é poder, espaço é acesso. Essa fragmentação excludente, que é fruto de um projeto, apesar de ser normalizada como efeito colateral do “progresso”, tem como consequência a oferta/omissão desigual de serviços e infraestruturas para populações historicamente vulnerabilizadas.

No caso brasileiro, quem suporta o ônus da injusta formação socioespacial – seja por meio das distâncias, seja por danos ambientais impostos – são as pessoas herdeiras da desumanização da colonialidade, afetadas pela criminalização de seus corpos, de seus saberes e de seus territórios. Não é por mera coincidência que as populações impactadas pela COVID-19 e pela poluição por projetos de privatização contrários à proteção do bem comum são as populações negras, indígenas, pobres e os povos tradicionais.

ClimaInfo: Podemos entender o planejamento e ordenamento das cidades por meio do racismo ambiental?

Gabrielle: Sim. A atual política urbana é racista. Apesar de planos diretores  (instrumento básico de definição do modelo de desenvolvimento de um município) que almejam transparência na construção de cidades sustentáveis e inclusivas, ainda há um longo caminho a ser percorrido. A organização da cidade ainda obedece às estruturas de poder e ao controle dos corpos. São recorrentes as notícias sobre expansões portuárias sem considerar o impacto sobre comunidades tradicionais, a falta de espaços verdes, o déficit habitacional – embora haja, ainda hoje, edificações vazias o suficiente para supri-lo, a falta de saneamento básico e o genocídio da população negra decorrente de intervenções violentas do Estado. 

Um dia desses eu vi uma pessoa (o jornalista Victor Hidalgo)  comentando na internet o seguinte: “não tem nada para fazer perto de casa que não seja beber e usar drogas. Não tem um parque, uma área de lazer, uma quadra. O espaço verde mais próximo é um cemitério.” Isso, para mim, demonstra o tamanho do problema, e como o planejamento e o ordenamento das cidades – orientado pelo racismo ambiental – é capaz de causar múltiplos impactos. Uma cidade que não combate o racismo ambiental age em prol da necropolítica e condena a sua juventude a essas vivências insalubres e inseguras com o meio urbano.

ClimaInfo: Como diferenciar o racismo estrutural do racismo ambiental e climático? A justiça ambiental depende da justiça racial? Por quê?

Gabrielle: Os racismos ambiental e climático são formas de materialização do racismo estrutural. Outros exemplos desta materialização são o racismo cultural, o racismo religioso e o racismo institucional. As justiças ambiental, climática e racial são interdependentes. A lente da justiça racial abre caminho para a luta pela participação inclusiva das vozes de populações que são desproporcionalmente afetadas pelos efeitos de eventos climáticos extremos e por planejamentos urbanos desiguais. 

As populações negras e indígenas e as comunidades tradicionais podem e devem ser efetivamente ouvidas e reparadas. Essa lente também permite olhar para outras dimensões, como a do combate à violência policial, que também estrutura a violência do espaço urbano e impede que a justiça ambiental seja garantida e que seus serviços sejam desfrutados. A justiça racial busca endereçar as diversas dimensões de luta pela libertação e pela autodeterminação dos povos, incluindo as dimensões ambientais e climáticas.

ClimaInfo: Ainda é difícil para o brasileiro enxergar o apartheid no país diante do fato de o racismo ser institucionalizado e estrutural?

Gabrielle: Acredito que o brasileiro consiga enxergar o apartheid. O que deve ser questionado é a dificuldade de romper com sua normalização. A dimensão estrutural e institucionalizada do racismo só é possível graças à construção de um imaginário social que normaliza a segregação e, por ter normalizado, a reproduz. O racismo é estrutural justamente porque também produz afetos e molda o inconsciente coletivo. 

Como o modelo de industrialização brasileiro está relacionado à questão e como enxergamos os seus passivos para a população?

Gabrielle: O modelo de industrialização brasileiro foi tardio e acompanhado de uma forte concentração espacial e financeira. É um modelo de “desenvolvimentos” de curto prazo, de empregos instáveis, de exploração de recursos naturais e de externalidades ambientais que não se traduzem em objetivos sustentáveis. O afundamento dos bairros de Maceió – o maior desastre geológico em área urbana em andamento no mundo – ilustra esse cenário e os impactos para a sua população. O racismo ambiental se expressa no impacto das indústrias extrativas mineradoras que atingem especialmente populações tradicionais, como os geraizeiros no Norte de Minas Gerais e os povos indígenas, como os Yanomami, contaminados pelo mercúrio do garimpo. 

Como, hoje, o país vive um processo de reprimarização da economia, a sua tendência agrário-exportadora, implica um aumento do desmatamento, e a subsequente diminuição do sequestro de carbono da atmosfera. O aumento desregulado dessa atividade gera consequências não só para o Brasil, como para o mundo, já que há um aumento na emissão de gases do efeito estufa (GEE), sobretudo gás carbônico (CO2), responsáveis por mudanças climáticas. A intensificação das consequências das mudanças climáticas impactam desproporcionalmente grupos vulnerados atravessados por raça, classe e gênero.

ClimaInfo: O agravamento das consequências das mudanças climáticas e as crises da dinâmica urbana se retroalimentam?

Gabrielle: Sim, tudo está conectado e, por isso, denominamos crise socioambiental. As cidades são uma das principais fontes de emissão de gases de efeito estufa e, em muitos países, concentram a maior parte da população. A população citadina é vulnerável aos riscos associados às mudanças climáticas, como deslizamentos, enchentes e aumento do nível do mar. É importante ressaltar que a dinâmica de ocupação da cidade ocorre de forma desigual e resulta da falta de planejamento urbano. Casos de deslizamento só geram perdas humanas pela omissão em promover habitação segura por parte do poder público. 

Enchentes seriam menos prejudiciais caso os projetos urbanos fossem pensados para interagir com as águas, ao invés de canalizar rios ou proceder com aterramentos, por exemplo. Por isso, também é importante que existam estratégias de planejamento urbano voltadas para resiliência e interação com fenômenos naturais, que devem se acirrar com as mudanças climáticas, tornando as cidades capazes de melhorar a eficiência eco-energética e a proteção das matas ciliares, por exemplo. Esse tipo de pensamento não é nenhuma inovação, e pode ser facilmente encontrado em formas de habitar dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais.

ClimaInfo: O que é o acordo de Escazú? Como ele poderia ser determinante para o combate do racismo ambiental?

Gabrielle: O Acordo de Escazú é o primeiro tratado regional ambiental da América Latina e do Caribe sobre o acesso à informação, à participação pública e ao acesso à justiça em assuntos ambientais. Além de reforçar o papel da cooperação Sul-Sul na promoção do desenvolvimento sustentável e da transparência, é um acordo com obrigações progressivas que se compromete com a proteção dos defensores dos direitos humanos em assuntos ambientais.

No Brasil, as comunidades indígenas são centrais na proteção do meio ambiente, mas sofrem com a violência e a criminalização de seus territórios – o Brasil é o quarto país no mundo com mais assassinatos de lideranças ambientais e do direito à terra. Escazú representa uma ferramenta a mais na proteção desses povos e do meio ambiente. É preciso proteger quem protege. Por isso, precisamos cobrar a ratificação desse acordo dos candidatos das eleições de 2022. Um novo governo precisa ter essa agenda como prioridade.

ClimaInfo: Na sua visão, o que deve ser feito nas diferentes esferas da sociedade para um combate real ao racismo ambiental?

Gabrielle: O real combate só será possível a partir de eixos antirracistas: a implementação de uma participação intergeracional inclusiva da população nos processos de tomada de decisão, a reparação social dos grupos afetados, o investimento em tecnologias sociais sustentáveis, o fortalecimento das legislações de proteção ambiental e o compartilhamento de saberes. Para que a participação seja efetiva e informada, é preciso um amplo acesso à informação, transparência e inclusão digital. As populações vulnerabilizadas, especialmente as juventudes, precisam não só ter o seu direito à consulta garantido, como precisam ocupar lugares na mesa de construção das políticas públicas. 

Quanto à reparação, é preciso que os compromissos climáticos assumidos pelos governos sejam cumpridos, que seja exigida a demarcação das terras indígenas e rejeitada a tese do marco temporal. O investimento em tecnologias sociais, além de promover a autodeterminação dos povos, promoverá a emancipação dos territórios e potencializará a juventude. Sobre as legislações, constata-se que o atual governo (do presidente Jair Bolsonaro) promoveu um afrouxamento de instrumentos jurídicos e dos órgãos de fiscalização e controle, e isso também é uma dimensão do racismo ambiental. Ações como essas impactam desproporcionalmente os povos da floresta e todos que dela dependem, direta ou indiretamente, tornando-nos vítimas das consequências da permissividade dos crimes ambientais – por isso, a proteção socioambiental deve ser implementada e fortalecida. 

No nosso último relatório (da Plataforma Cipó), eu e a pesquisadora Renata Albuquerque exploramos a relação entre financiamento de campanha por infratores ambientais na Amazônia Legal e proposições legislativas no Congresso Nacional – dimensões que também precisam ser estudadas e entendidas para a construção de estratégias que promovam justiça. Todavia, somente por meio do estudo e da implementação desses eixos interseccionais, somada ao compartilhamento de seus respectivos saberes, haverá uma verdadeira construção da justiça socioambiental e, portanto, o combate ao racismo ambiental.

(*) Tatiane Matheus é jornalista e pesquisadora em Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão no Instituto ClimaInfo

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