Daniela Vianna*
Ano a ano, vemos novas descobertas científicas sobre benefícios da natureza para o combate a doenças e para a manutenção do equilíbrio da vida na Terra.
Só para citar um exemplo, pesquisadores confirmaram o que povos originários e comunidades locais de regiões rurais da Colômbia, da Bolívia, do Brasil e de outros países latino-americanos já sabiam empiricamente – que o ipê-roxo (do gênero Tabebuia avellanedae), mais do que embelezar paisagens, guarda em suas folhas agentes anti-inflamatórios, antileucêmicos e antimicrobianos. Esses são, entre outros, o que se convencionou chamar de serviços ecossistêmicos**.
Apesar dos benefícios prestados inclusive à saúde, pelo ipê – uma das árvores mais cobiçadas pelos madeireiros, pela alta procura no mercado internacional –, ele foi retirado pelo presidente Jair Bolsonaro, em 2020, da lista internacional da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Selvagens Ameaçadas de Extinção (Cites, na sigla em inglês), conforme noticiado à época pelo Conexão Planeta.
A série Cura pela Mata, publicada no Ecoa, do portal UOL, destaca que o Brasil tem um patrimônio genético de 200 mil espécies registradas, número que está subestimado e deve representar apenas 11% das 1,8 milhão de espécies que devem existir no país. Os dados são do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, ligado ao Ministério do Meio Ambiente. Estima-se que duas mil espécies vegetais estavam ameaçados de extinção em 2020.
Quantas espécies serão extintas pela ação humana antes mesmo que se conheça seus benefícios ou sem que sejam sequer classificadas? Corremos o risco de levar um milhão de espécies à extinção ainda neste século, muitas delas em décadas, segundo dados do IPBES (Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos) mencionados pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, durante o discurso de abertura da COP15.
É para evitar este desastre que existe a Conferência da Biodiversidade da ONU, que chega à segunda semana de sua COP15 com um texto-base ainda cheio de colchetes, o que significa que muito ainda terá de ser negociado até 19 de dezembro, data prevista para o encerramento do encontro internacional.
Reunidos em salas fechadas, climatizadas e apartadas de ambientes naturais, na gélida Montreal, no Canadá, representantes dos 196 países representados na COP15 mexem as peças do tabuleiro da vida. Estão debruçados sobre termos, expressões e metas em 21 páginas de um rascunho de acordo global que, pelo menos até agora, só reflete a relutância da diplomacia internacional em assumir um compromisso coletivo com as medidas urgentes e necessárias para frear a perda da biodiversidade e proteger os direitos dos povos indígenas e das comunidades locais.
Nem as duas reuniões preparatórias, uma ocorrida em Genebra, em março, e outra em junho em Nairóbi, no Quênia, avançaram a ponto de deixar o texto mais próximo de um resultado final. Enquanto isso, os negociadores não vislumbram a olho nu a janela de oportunidades que se fecha diante da sexta maior extinção em massa do planeta que já está em curso – a primeira provocada por uma única espécie, a nossa.
Os próximos sete dias serão decisivos. O que se espera é a consolidação de um Marco Global da Biodiversidade Pós-2020, nos moldes do que o Acordo de Paris representou para a questão climática. O Marco, com metas para 2030 e objetivos de longo prazo, até 2050, tem como base o quinto Panorama da Biodiversidade Global, publicado em 2020 pela Convenção da Diversidade Biológica (CDB) e é alinhado aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.
Como mostra Ana Carolina Amaral, na Folha, a proposta mais popular como meta de conservação à mesa de debates foi apelidada de 30×30. Ela prevê a conservação de 30% da biodiversidade até 2030. Entretanto, isso ainda não é consenso. Movimentos sociais, incluindo a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e o MST (Movimento Sem Terra) defendem parcela maior, de conservação, de 50% dos ecossistemas. Além disso, existe um imbróglio para definir se a meta será global ou nacional. China, Brasil, África do Sul e outros países magabiodiversos são contra a meta global, aponta Ana Carolina.
Crise climática e perda da biodiversidade
O Fórum Econômico Mundial, em 2022, colocou a crise climática e a perda da biodiversidade entre os três maiores riscos para a economia global dos próximos 10 anos. As duas questões estão intimamente relacionadas, como mostra a 14ª edição do relatório Planeta Vivo 2022, lançado pelo WWF em outubro deste ano pouco antes da Conferência do Clima de Sharm El-Sheikh, no Egito. O relatório aponta para a perda média de “69% na abundância relativa de populações de vida selvagem monitoradas em todo o mundo” desde 1970.
O relatório analisou 32 mil populações de espécies selvagens. Muitas delas, como mostram os dados, não estão conseguindo resistir às pressões impostas pela ação humana e pelo aquecimento global nos seus respectivos hábitats.
As regiões tropicais foram as que mais sofreram impactos. A América Latina teve o maior declínio regional na abundância média da população (94%). No âmbito global, as populações de espécies de água doce foram as que tiveram o maior declínio (83%). “A mensagem é clara, e as luzes vermelhas estão piscando”, alertou Marco Lambertini, diretor geral do WWF Internacional.
Segundo Lambertini, a COP15 pode ser a oportunidade de escolha do caminho certo na bifurcação diante da qual a humanidade se encontra. Esse caminho passa pelo entendimento de “dependemos da natureza muito mais do que a natureza depende de nós”. “Assim como o objetivo global de ‘emissões líquidas zero até 2050’ está mobilizando o setor de energia a mudar para as energias renováveis, a ‘natureza positiva até 2030’ irá mobilizar os setores que são motores da perda da natureza – agricultura, pesca, silvicultura, infraestrutura e extrativo – impulsionando a inovação e a aceleração em direção a comportamentos sustentáveis de produção e consumo”, defendeu.
Elizabeth Maruma Mrema, secretária-executiva da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biologica acrescenta que o que está em jogo “são os fundamentos da existência humana”, já que ecossistemas equilibrados fornecem clima moderado, solo e alimentos férteis, água limpa, medicamentos e a base da nossa economia. “Quase metade da humanidade depende diretamente dos recursos naturais para sua subsistência.”
Mudanças no uso da terra e do mar, superexploração, mudanças climáticas, espécies invasoras e poluição, segundo Mrema, são as principais causas do declínio da biodiversidade planetária. Entre as tratativas na COP15, diz ela, está o uso de soluções baseadas na natureza (ecosystems-based solutions) para contribuir com a mitigação e a adaptação às mudanças climáticas, visando garantir que os esforços para redução das emissões evitem igualmente impactos negativos sobre a biodiversidade.
David Cooper, secretário-executivo adjunto da CDB, destacou os debates sobre fluxos financeiros para o apoio à conservação da biodiversidade e a importância do reconhecimento do papel dos povos indígenas e das comunidades locais na proteção dos recursos naturais.
Quem vai financiar a conservação, se só governos ou também empresas, é questão ainda em aberto. O que se sabe é que, sem financiamento adequado, dificilmente o plano sairá do papel.
Os principais pontos das negociações
No Guardian, Patrick Greenfield fez um levantamento dos principais pontos das negociações da COP15, que apresentamos a seguir.
Ampliação de áreas protegidas – A proposta é restaurar e revitalizar um bilhão de hectares de ecossistemas marinhos, costeiros e terrestres degradados. Área equivalente à da China.
Espécies invasoras – Ampliação de esforços para eliminar ou pelo menos reduzir à metade o número de espécies invasoras, que são deslocadas por ação humana dos ecossistemas de origem para outros nos quais não possuem predadores, causando assim desequilíbrio e prejuízos à fauna e à flora locais. Um exemplo clássico disso foi a inserção de 10 casais de castores, nos anos 1940, levados do Canadá para a região de Ushuaia, conhecida como Tierra del Fuego, na Argentina para incentivar o comércio de peles. Eles se proliferaram pela falta de predadores e, ao fazer o que mais sabem fazer – diques e represas –, alteraram cursos de rios, impactaram gravemente os ecossistemas locais e deixaram para trás as chamadas “florestas fantasmas”, tanto na Argentina como no Chile. A National Geographic Brasil conta melhor essa história.
Proteger a Terra – A maior parte dos países que atendem à COP15 apoiam a proposta de conservar pelo menos 30% da terra e dos oceanos até 2030, na meta que está sendo chamada de “30×30”. Reino Unido, França, Costa Rica e Canadá, que sedia o encontro, lideram a proposta. Comunidades indígenas alertam para o risco da meta estimular grilagem de terras e violações de direitos em países que possuem mais de 30% dos seus territórios protegidos, como é o caso do Brasil.
Prevenção da extinção em massa – Com dados robustos indicando que, devido à ação humana, um milhão de espécies estão ameaçadas de extinção ainda neste século – a pior extinção em massa dos últimos 65 milhões de anos, quando os dinossauros foram dizimados da Terra – existem diversas cláusulas no texto base que está sendo discutido na COP15 para preservá-las. Entretanto, não há consenso entre os países sobre mencioná-las explicitamente no texto final.
Fim dos subsídios à destruição – David Cooper, da CDB, diz que umas das metas é incorporar valores da biodiversidade nas políticas governamentais e aliar os fluxos financeiros para apoiar, em vez de destruir os recursos naturais. Segundo o Guardian, todos os anos, o mundo gasta cerca de 1,8 trilhão de dólares em subsídios, por parte de governos, que impulsionam a aniquilação da vida selvagem e o aumento do aquecimento global. A matéria cita, por exemplo, isenções fiscais que contribuem para o desmatamento da Amazônia visando a produção de carne bovina. No jogo de forças, alguns países propõem o redirecionamento de pelo menos 500 bilhões de dólares por ano desses recursos, até 2025, para ações de proteção da biodiversidade. Ainda não há consenso sobre isso também.
Pesticidas – Está em debate uma proposta de redução em pelo menos dois terços o uso de pesticidas, que são responsáveis pela redução drástica das populações de insetos em todo o mundo, como alertam os cientistas. Os insetos são considerados essenciais para o equilíbrio dos ecossistemas. O Guardian alerta para a pressão, por parte de produtores agrícolas, pela não inclusão de metas globais envolvendo a questão. A União Europeia propõe a criação de uma meta de redução de 50% do uso de pesticidas até o final da década.
Poluição por plásticos – Embora o tema conste no texto, principalmente relacionado à poluição por plásticos no oceano que afeta diretamente a vida marinha, o Guardian alerta que metas específicas sobre o tema não deverão constar no texto final da COP15 para não sobrepor a outro acordo que está sendo costurado entre líderes mundiais em outra esfera multilateral, visando a elaboração de um tratado juridicamente vinculante sobre os resíduos plásticos. A primeira rodada de negociações sobre este outro tratado foi realizada neste mês, no Uruguai.
As peças estão no tabuleiro, o jogo está em curso. Vamos acompanhar de perto e torcer por um xeque-mate na destruição que coloca todas as formas de vida em risco, inclusive a nossa.
(*) Daniela Vianna é jornalista, doutora em Ciências Ambientais (PROCAM), colaboradora do ClimaInfo e pós-doutoranda do Saúde Planetária Brasil, ligado ao Instituto de Estudos Avançados da USP.
(**) O livro digital “Plantas Medicinais: Fortalecimento, Território e Memória Guarani e Kaiowá”, lançado em 2020 e editado pela Fiocruz, registra a memória dos saberes da etnia Guarani-Kaiowá na região Centro-Oeste do Brasil sobre suas práticas tradicionais de cura e sobre as plantas medicinais mais prevalentes entre os povos originários daquela região.
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