100 dias do governo

Lula 100 dias
Ricardo Stuckert

Confira repercussões que preparamos sobre os primeiros três meses do governo para o ativismo socioambiental e climático

Desde que o governo Lula começou, em 1º de janeiro de 2023, muitas de suas promessas de campanha na área ambiental foram cumpridas, notadamente:

  • Criação do Ministério dos Povos Indígenas, com a ativista e política Sônia Guajajara como ministra.
    • A iniciativa de um ministério inédito na Esplanada ainda está repleta de desafios. Um deles começa a ser endereçado com a destinação de R$ 640 milhões para compor o orçamento da pasta e dos demais órgãos indigenistas e de fiscalização;
  • Liderança Indígena na Funai, com a advogada e política Joenia Wapichana.
    • A autoridade responsável pela demarcação de territórios e outras políticas indígenas nunca havia sido chefiada por uma pessoa indígena; mudanças nas áreas de povos isolados, desintrusão e combate ao proselitismo religioso estão entre os primeiros desdobramentos;
  • Liderança Quilombola na Fundação Palmares, com o ativista João Jorge Rodrigues.
    • Esta é a primeira vez que o órgão responsável pela demarcação de territórios quilombolas e outras políticas para comunidades negras é chefiado por um membro do movimento negro; 
    • Em março, o programa Aquilomba Brasil retomou os processos de titulação. 
  • Liderança renovada no IBAMA, com o político Rodrigo Agostinho.
    • O órgão federal responsável pelo licenciamento e pela fiscalização ambientais volta a atuar em linha com sua missão institucional. Entre as primeiras medidas adotadas está a retomada da cobrança de multas ambientais perdoadas por Bolsonaro (leia entrevista no Valor);
  • Ministério do Meio Ambiente, com Marina Silva.
    • A nova gestão trata de elevar a questão ambiental e climática ao patamar de política estratégica nacional e internacional. Agendas de alto nível foram observadas após a indicação da ministra, com foco na captação ou no descongelamento de recursos
    • Criação da Secretaria Nacional de Mudanças Climáticas, com a economista Ana Toni. Uma das prioridades da pasta é mapear as diferentes iniciativas de clima entre os ministérios e órgãos federais, criando um alinhamento entre elas. Está em discussão um plano nacional de adaptação climática.
  • Desbloqueio do Fundo Amazônia e maior uso desse mecanismo para a diplomacia climática.
    • O Fundo tornou-se uma alternativa orçamentária para retomar a execução de políticas ambientais, climáticas e de proteção indígena (leia mais na Folha); 
  • Megaoperação na Terra Yanomami, ainda em curso. Seis outras operações de desintrusão para acabar com o garimpo ilegal em Terras Indígenas estão sendo planejadas para este ano;
  • Financiamento com devida diligência: o BNDES passa a usar dados do MapBiomas para cancelar empréstimos a negócios implicados no desmatamento; 58 propriedades já tiveram financiamentos embargados;
  • Solar: inclusão do segmento de energia solar no PADIS (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria de Semicondutores). Com isso, as placas fotovoltaicas terão isenção fiscal, barateando a produção e o acesso.  
  • A muito antecipada Cúpula Amazônica, que estava prevista inicialmente para acontecer na Colômbia, será realizada em agosto, em Belém (PA).

Pontos de atenção:

  • Boiadas no Congresso: Apesar da mudança na política ambiental e climática no nível federal, uma parte importante do parlamento brasileiro continua apostando em tentativas de passar a boiada. Dois casos se destacam nesses primeiros 100 dias:
    • Sob a relatoria do deputado Efraim Filho (União Brasil-PB), a Câmara aprovou, no final de março, uma Medida Provisória do governo anterior para afrouxar a proteção da Mata Atlântica, com uma série de ‘emendas jabutis’  de interesse do lobby de construtoras e da Bancada Ruralista. A expectativa é de que a MP possa ser barrada no Senado ou vetada pelo Executivo;
    • O lobby minerário ainda não desistiu totalmente do PL 191/2000, que visa regulamentar a mineração em Terras Indígenas. O presidente Lula pediu aos congressistas que enterrem definitivamente o assunto. 
  • Desmatamento: os primeiros números de desmatamento do ano mostram que este será um problema difícil de resolver. A próxima taxa anual provavelmente mostrará aumento da perda florestal, principalmente na Amazônia.
    • Os dados anuais de desmatamento são calculados pelo INPE de agosto do ano anterior (neste caso, 2022) a julho do ano vigente (2023). Com metade dos números do último ano Bolsonaro, quando houve um clima de ‘baile da Ilha Fiscal’ entre os criminosos ambientais, e com os números altos deste começo de ano, uma inflexão da próxima taxa anual já é altamente improvável;
    • É crível a hipótese de que os desmatadores estão agindo estrategicamente para aumentar as taxas. Movimento semelhante foi observado logo após o resultado eleitoral;
    • O armamento de criminosos ambientais nos últimos quatro anos e a crescente simbiose entre o crime ambiental e outros segmentos do crime organizado são vistos como um desafio adicional para as ações de comando e controle;
  • Diplomacia Florestal: a ambiciosa proposta sinalizada por Lula na COP27 de que o Brasil poderia liderar uma aliança de países com grandes florestas não teve novos desenvolvimentos.
    • Uma versão mais concentrada disso também chegou a ser sinalizada, envolvendo apenas República Democrática do Congo, Indonésia e Brasil, os países com os maiores percentuais das três florestas mais importantes do planeta. Ainda não há nenhum movimento neste sentido nesses primeiros dias; 
  • Vaca Muerta e BNDES: a Argentina já tinha ouvido uma promessa de financiamento via BNDES para o gasoduto Vaca Muerta por parte do governo anterior. Com a vitória de Lula, o governo argentino assumiu que este financiamento estaria garantido.
    • Vaca Muerta é um projeto de exploração de gás por meio da técnica de fracking (fratura hidráulica) que foi apresentado aos argentinos como ‘a salvação da lavoura’, uma espécie de pré-sal que garantiria um futuro com qualidade de vida; 
    • Para explorar todo o potencial de Vaca Muerta, seria necessário construir um enorme gasoduto que levasse a produção até os centros de consumo em Buenos Aires, Rosário ou mesmo para regiões do Brasil;
    • O projeto sempre teve problemas para encontrar um financiador interessado. Entre os muitos riscos, estão os impactos políticos, sociais, ambientais e climáticos do fracking, que em Vaca Muerta afeta de maneira desproporcional os indígenas Mapuche e produtores rurais (leia mais no Estadão); 
    • O fracking causa terremotos, contamina a água e o ar, gera poluição sonora permanente e causa abalos em edifícios, casas e outras estruturas. Esse conjunto de impactos expulsa as comunidades e destrói a biodiversidade. Por ser uma exploração de gás metano, um poderoso gás de efeito estufa, esses projetos também contribuem para agravar a crise climática;
    • Em visita à Argentina em fevereiro, o lado brasileiro sinalizou novamente para este financiamento. O BNDES segue negando, ao menos, publicamente. 
  • Petrobras: a maior e mais estratégica empresa do país deve se preparar para uma transição energética que a tornará uma gigante de energia, e não apenas uma produtora de combustíveis fósseis. É o que dizem Lula, Marina e o próprio presidente da empresa, Jean Paul Prates. Mas os movimentos iniciais da nova gestão da companhia apontam no sentido exatamente oposto.
    • Transição energética significa o fim de novos projetos de exploração de combustíveis fósseis e o abandono progressivo e planejado dos projetos existentes. Nas palavras recentes do chefe da Agência Internacional de Energia, Fatih Birol, “uma companhia não pode aumentar sua produção de petróleo e dizer que está em linha com o Acordo de Paris. As duas coisas não podem acontecer ao mesmo tempo”;
    • Atrasar a transição da Petrobras a coloca, junto com o Brasil, na retaguarda de uma mudança na economia que já está em curso. Isso atende aos interesses das economias centrais que temem perder competitividade nessa corrida. E mais importante: fragiliza a maior empresa do país frente a um cenário inevitável e climaticamente inadiável; 
    • Além de sinalizar para novas fronteiras de exploração, o presidente da empresa elencou como prioritária a extração na Foz do Rio Amazonas, uma área sensível, responsável por descarregar nada menos do que 20% de toda a água doce que chega aos oceanos, além de abrigar um gigante e complexo sistema de corais ainda pouco estudados. 
  • Ministério de Minas e Energia: com exceção da recusa para projetos em Terras Indígenas, o novo governo ainda guarda semelhança com a gestão anterior no setor de mineração. O mesmo vale para a energia fóssil. O MME está sendo um dos últimos ministérios a fechar sua composição.
    • Uma novidade é a atenção renovada aos minerais raros, essenciais para tecnologias de ponta, incluindo energias renováveis. O tema demandará transparência e debate para garantia de salvaguardas sociais e ambientais. 
    • A ideia de desperdiçar dinheiro público em um enorme gasoduto chamado Brasduto continua viva. O projeto interessa ao empresário Carlos Suarez. 

Tendências para observar:

China: Lula e comitiva seguem para a China amanhã (11). Uma parte da agenda a ser discutida acabou revelada por parte da equipe que já estava no país asiático em 26 de março, quando a viagem foi adiada devido a uma pneumonia enfrentada pelo presidente brasileiro. De forma geral, os principais elementos apontam para o aumento do investimento direto dos chineses no Brasil, inclusive:

Carro elétrico: enquanto montadoras europeias e dos EUA deixam claro que não pretendem produzir carros elétricos no Brasil, as empresas chinesas formalizam desejo oposto – a BYD está adquirindo a Ford, na Bahia, enquanto a GWM ficará com a fábrica da Mercedes-Benz, em São Paulo;

Cooperação climática: ainda está pouco claro como a China entrará na cooperação pela preservação da Amazônia – se via Fundo Amazônia ou novo mecanismo de doação ou mesmo se oferecerá apoio de monitoramento por satélite. Uma venda bilateral de 10 bilhões de dólares anuais em créditos de carbono – ou direito de poluir – foi antecipada pela BBC em março, e isso deve gerar polêmica;

Banco dos BRICS: a presidência de Dilma Rousseff no Banco dos BRICS deverá ampliar ainda mais o financiamento do setor agroexportador brasileiro;

Renováveis: a viagem deve render ainda parcerias renovadas entre os países nos temas de energias solar e eólica, além de projetos de infraestrutura. 

Agro: Por ocasião da viagem à China, os primeiros estranhamentos entre o governo Lula e representantes do agronegócio foram revelados. A caravana que partiu em março estava repleta de porta-vozes do ruralismo nacional, incluindo os irmãos Batista, donos da JBS. 

O grupo reagiu com ultraje às declarações de Jorge Viana, chefe da APEX, que simplesmente disse que o agronegócio está impulsionando o desmatamento da Amazônia. Embora isto seja um fato de conhecimento geral, comprovado por um catatau de artigos científicos e também pelos dados oficiais, a informação constrange os ruralistas mais adeptos ao negacionismo. E eles devem seguir por uma estratégia clara: classificar quaisquer críticas ao setor  como ‘crimes’ de lesa-pátria. 

Nova meta climática? A criação da Secretaria Nacional de Mudança Climática, com Ana Toni no comando, sinaliza um aumento potencial na ambição climática brasileira. A ‘pedalada climática’ feita na NDC brasileira na gestão anterior poderá ser enfim revista, com alguma expectativa para que o país fortaleça seus objetivos no Acordo de Paris, aumentando a pressão sobre os países ricos. 
Financiamento climático global: Uma iniciativa para reformar as instituições multilaterais de financiamento – o Banco Mundial e o FMI – está em estágio adiantado no âmbito da ONU e uma proposta deve ser apresentada em junho, na França. A Agenda de Bridgetown, como a iniciativa é chamada, é liderada pela primeira-ministra de Barbados, Mia Mottley, e busca incorporar a agenda climática no financiamento multilateral. Essa discussão conta com a simpatia de Lula, que sempre defendeu uma reforma profunda nesses mecanismos. 

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