As ameaças e os descalabros do PL490, agora ‘rebatizado’

Crédito: Amanda Perobelli/Reuters

O projeto de lei, aprovado pela bancada ruralista na Câmara em 30 de maio e encaminhado ao Senado Federal, sob o número 2903/2023, é uma afronta aos direitos indígenas e à Constituição Federal, denunciam lideranças dos povos originários.

O PL490/2007, agora PL2903/2023, visa regulamentar o artigo 231 da Constituição Federal de 1988 – que reconheceu os direitos originários dos povos indígenas à terra tradicionalmente ocupada por eles. É preciso estômago para a leitura do texto, pois ele nos remete à ferida histórica de um país marcado pela vilipendiação de direitos desde o final dos anos 1400. Recheado de brechas e generalizações, que abrem margem para interpretações jurídicas e desmandos nos territórios, representa uma (nova) grave ameaça aos povos indígenas. 

Levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), encaminhado ao Supremo Tribunal Federal, indica que existem, hoje, 724 Terras Indígenas em processo administrativo de demarcação aberto ou encerrado. Elas somam 13,8% do território nacional, e a maior parte das TI (98%) estão na Amazônia Legal.

O PL490 assume a tese jurídica do marco temporal como premissa – dizendo que só tem direito às terras quem as estivesse ocupando (ou lutando por elas na Justiça) em 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal (leia mais sobre o Marco Temporal). Vale lembrar que os processos de demarcação de Terras Indígenas ocorreram principalmente depois da Constituição de 1988.

O texto do PL não para por aí; traz outros descalabros. “O PL também autoriza qualquer pessoa a questionar procedimentos demarcatórios em todas as fases do processo (inclusive os territórios já homologados) e flexibiliza a política indigenista do não contato com os povos indígenas em situação de isolamento voluntário”, denunciou Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

É no mínimo imoral e dúbio o trecho que menciona “alterações dos traços culturais da comunidade indígena ou de outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo (…) em área indígena reservada” como motivos possíveis para que a União possa “retomá-la, dando-lhe outra destinação de interesse público ou social” ou mesmo autorizando a destinação ao Programa Nacional de Reforma Agrária.

Não é à toa que a nota técnica assinada pela assessoria jurídica da APIB, em 16 de maio, é taxativa ao dizer que o PL490 e seus apensos são “flagrantemente inconstitucionais, por violarem os Direitos Fundamentais dos Povos Indígenas, bem como violam inúmeros Princípios e dispositivos da Constituição Federal, em especial o Art. 231”, além de violarem os “Tratados Internacionais de proteção aos Direitos Humanos, dos quais o Brasil é signatário”.

Cinco organizações indígenas, enviaram, no dia 30 de maio, um apelo urgente à Organização das Nações Unidas denunciando o PL490, por tentativa de destituição de direitos constitucionais das populações originárias, inviabilização de demarcações de terras indígenas e ameaças aos territórios já homologados, como revela a Conectas.

Os artigos do Capítulo 3, sobre uso e gestão de Terras Indígenas, são para lá de preocupantes. O artigo 20, por exemplo, diz que “o usufruto dos indígenas (à terra) não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional”, permitindo a implementação de “instalações de bases, unidades e postos miliares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou ao órgão indigenista federal competente”.

O artigo 21 vai na mesma linha, e assegura a atuação das Forças Armadas e da Polícia Federal em área indígena também “independentemente de consulta às comunidades”, pavimentando terreno para o 22, que explicita a permissão ao poder público para “a instalação em terras indígenas de equipamentos, de redes de comunicação, de estradas e de vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e educação”.

E lá vem o artigo 24, flexibilizando o ingresso de não indígenas a áreas indígenas inclusive para pessoas em trânsito, “em caso de existência de rodovias ou outros meios públicos para passagem”.

Acha que parou por aí? Nada! O artigo 26 abre brechas para atividades econômicas em terras indígenas “admitidas a cooperação e a contratação de terceiros não indígenas”, permitindo contratos para “a realização de atividades econômicas, inclusive agrossilvipastoris. 

Para finalizar, o artigo 28 flexibiliza o contato com indígenas isolados, aponta o g1.

Terras Indígenas e os serviços ecossistêmicos e climáticos

Pesquisas indicam que as Terras Indígenas representam, além do valor intrínseco para a sobrevivência e a cultura dos povos que nelas habitam, também um papel fundamental de regulação climática e do regime de chuvas, além da conservação ambiental, como ressalta a Conectas.

Os povos indígenas representam apenas 5% da população mundial, porém, os territórios e povos indígenas guardam cerca de 80% da biodiversidade do planeta, como aponta a FAO. No Brasil a realidade não é diferente. Segundo o MapBiomas, nos últimos 30 anos (1991 – 2021), as TIs perderam apenas 1,2% de sua área de vegetação nativa, enquanto nas áreas privadas a perda foi de 19,9%.

Ameaçar essas Tis, além de ser um crime contra a humanidade, é também um tiro no pé do próprio agronegócio, que se beneficia dos serviços ecossistêmicos prestados pela proteção das florestas, como a manutenção dos ciclos hidrológicos, a fertilidade do solo e o controle de pragas, só para citar alguns.

“Na Amazônia brasileira, as comunidades indígenas protegem e manejam áreas que armazenas 27% dos estoques de carbono da região, o que representa aproximadamente 13 bilhões de toneladas. (…) Esta retenção do carbono pelas florestas ajuda a conter o acúmulo de CO2 na atmosfera, com efeitos positivos na redução do aquecimento global”, ressalta a ONG.

ClimaInfo, 7 de junho de 2023.

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