Além de afago no agro, programa abre brecha para gás e regulamenta captura e armazenagem de carbono, “sonho” das petroleiras para produzir mais combustíveis fósseis.
Um futuro com muito cheiro de passado. Esse pode ser o resumo da lei que institui o programa “Combustível do Futuro”, sancionada pelo presidente Lula na 3ª feira (8/10). As intenções são boas: estimular iniciativas para promover a mobilidade sustentável de baixo carbono no Brasil. Mas, como de boas intenções o inferno está cheio, há muito mais dúvidas que certezas.
A norma cria os programas nacionais de “diesel verde”, de combustível sustentável para aviação e de biometano, além de aumentar a mistura de etanol e de biodiesel à gasolina e ao diesel, respectivamente. Também institui o marco regulatório para a captura e a estocagem de carbono. E supostamente destrava investimentos que somam R$ 260 bilhões, detalha a Agência Gov.
Mas, nas entrelinhas, houve [mais] um afago do governo no agronegócio. Por um lado, aumentar as margens da mistura de etanol à gasolina, que poderá chegar a 35%, ante os 27,5% atuais, e de biodiesel ao diesel fóssil, que vai atingir 20% em março de 2030, reduz as emissões de gases de efeito estufa dos transportes. Porém, suprir essa demanda, bem como a de óleo vegetal para produzir o “diesel verde”, vai exigir a expansão das culturas de cana, soja e palma que, historicamente, não rezam pelas melhores práticas socioambientais. Além de criar uma preocupante disputa por terras entre produção de combustíveis e de alimentos.
Criou-se também uma brecha para a expansão do gás fóssil a partir do biometano. O Programa Nacional de Descarbonização do Produtor e Importador de Gás Natural e de Incentivo ao Biometano visa estimular a pesquisa, a produção, a comercialização e o uso do biometano e do biogás, com o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) definindo metas anuais para redução da emissão de GEE pelo setor de gás fóssil [que eles chamam de “natural”] por meio do uso do biometano. A questão é que a expansão da oferta de biogás/biometano vai exigir uma infraestrutura que somente uma maior oferta de gás fóssil é capaz de bancar. Tudo, claro, regado a financiamentos camaradas do BNDES para implantar gasodutos.
A lei ainda estabelece um marco regulatório para a captura e a estocagem de carbono [CCS, sigla em Inglês]. É o “sonho” das petroleiras, que usam essa alternativa para dizer que assim irão “descarbonizar” a queima de combustíveis fósseis, a principal causa das mudanças climáticas. Mas, além de cara, é uma tecnologia para lá de incipiente, e sem efetividade comprovada.
Outra novidade da lei é o Programa Nacional de Combustível Sustentável de Aviação (ProBioQAV). A partir de 2027, os operadores aéreos serão obrigados a reduzir as emissões de GEE nos voos domésticos por meio do uso do combustível sustentável de aviação (SAF). As metas começam com 1% de redução e crescem gradativamente até atingir 10% em 2037.
A descarbonização do transporte aéreo é urgente e necessária, mas ainda há barreiras a serem transpostas. Um exemplo recente dessa encruzilhada veio da Air New Zealand. A aérea abandonou a meta de redução de emissões que tinha estabelecido até 2030 devido às dificuldades em adquirir novos aviões mais eficientes, bem como o SAF.
Outro mau sinal ocorreu justamente na cerimônia em que Lula assinou a lei do “Combustível do Futuro”. Segundo a Folha, pousaria no evento um avião da Azul movido a combustível sustentável de aviação, numa demonstração prática do novo mundo aberto pela legislação, mas a cena teve que ficar na imaginação. A Azul não conseguiu SAF para abastecer o avião. Para especialistas, será preciso mobilizar investimentos para equilibrar oferta e demanda pelo produto e tornar seus preços competitivos.
O Globo, Globo Rural, Money Times, Correio Braziliense, Investing.com e Carta Capital também repercutiram a lei do “Combustível do Futuro”.
Em tempo: O setor de petróleo tenta se apropriar do discurso da transição energética e se colocar como parte da solução para “evitar desequilíbrios” no processo de descarbonização da economia, destaca Nicola Pamplona na Folha. O novo discurso das petroleiras foi a tônica da Rio Oil and Gas [o “Saldão do Fim do Mundo”], no fim de setembro. A presidente da Petrobras, por exemplo, defendeu uma “transição energética justa e inclusiva” dizendo que a receita do petróleo é fundamental para financiar a transição energética. Tudo rebatido por Suely Araújo, coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima (OC): “Mais de 70% das emissões vêm dos combustíveis fósseis. Eles estão dizendo: ‘Sou a solução para resolver um problema que eu mesmo estou intensificando’. Não tem lógica”. Suely ainda rebate a Petrobras – “Não existe petróleo sustentável. Mais de 80% das emissões são na queima. Por mais que a Petrobras seja uma empresa qualificada, e é, por mais que reduza emissões no processo produtivo, quase a totalidade dos gases vão ser gerados na queima.”
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ClimaInfo, 9 de outubro de 2024.
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