Brasil de extremos climáticos: a natureza dá conta de se regenerar?

Especialistas correm contra o tempo para contabilizar danos à fauna e flora; enchentes e incêndios estão cada vez mais frequentes e atingem milhares de espécies.
15 de outubro de 2024
  • Juliana Aguilera, jornalista no ClimaInfo.
Brasil extremos climáticos
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Após as enchentes históricas no Rio Grande do Sul, especialistas começaram a contabilizar os danos, comparando o evento ao impacto do Furacão Katrina em New Orleans, Estados Unidos, em 2005. O tempo de recuperação da economia do estado foi estimado em uma década. Mas e quanto ao solo arrastado junto da vegetação e animais, que levou para casas de Porto Alegre argilas constituídas há mais de um século? O tempo na natureza é outro e isso também vale para sua recuperação. 

Um exemplo é a população de botos na região de Tefé, Amazonas, que sofreu morte expressiva na seca de 2023 e, neste ano, voltou a apresentar um cenário preocupante: uma morte por dia em um período de uma semana. A região Norte tem passado por secas extremas, as ondas de calor e estiagem acentuada no Pantanal criam cenários propícios para a propagação de incêndios com alta mortandade, e o Rio Grande do Sul ainda tenta contabilizar os danos causados à fauna e à flora da região. A biodiversidade brasileira está em risco. 

O Pantanal, a maior planície alagada do mundo, acumula déficits de chuva desde o verão de 2019/2020. A extensão do fogo em 2024 chegou a ser 54% superior à do período de 2020. Esse cenário de seca transforma a vegetação nativa, camalotes e outras plantas flutuantes, aponta José Eugênio Figueira, do departamento de Genética, Ecologia e Evolução do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG: “essa vegetação vai sendo incorporada no solo, camada após camada e se torna um solo muito orgânico, com densidade baixa, poroso”.

É essa matéria orgânica que torna as queimadas em incêndios de elevada intensidade e difíceis de controlar. Eles se espalham rapidamente, subindo também para a copa das árvores e subterrâneo. Neste cenário de devastação, a fauna fica muito vulnerável: “cobras e jacarés, por exemplo, são animais ectotérmicos – a temperatura corporal deles acompanha a temperatura ambiente. Animais de pequeno porte como gambás, tamanduás, macacos, animais mais lentos, como tartarugas, também são pegos pelo fogo”. 

E mesmo os animais que fogem do fogo, como onças que podem farejar a fumaça, caem em braseiros formados pelos incêndios subterrâneos. Muitos também morrem pela intoxicação dos gases nocivos que são expostos. E os que sobrevivem? Para onde foi o mundo deles? “Eles já estão fragilizados, aí vem a fome e estresse provocado pela falta de água e comida. Muitos acabam morrendo”, completa.

Especialistas do ICMBio contabilizam que, nos incêndios de 2020, cerca de 75 milhões de animais vertebrados e 4,6 bilhões de invertebrados foram afetados diretamente e indiretamente. O bioma, após quatro anos, ainda não se recuperou e as espécies não voltaram ao tamanho que eram. 

Assim como Pantanal, a Amazônia é um bioma acostumado com períodos de altas e baixas dos rios. O que era natural e marcava a floração e frutificação de diversas árvores, hoje gera dúvida nos especialistas sobre como será o futuro das espécies – se elas vão se adaptar e existir nas próximas décadas. 

No mesmo ano, o Acre viveu a maior enchente da sua história e a maior seca em mais de meio século. O rio Negro chegou a registrar seu menor nível em mais de 120 anos de medição e a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) confirmou que todos os 1.248.000 km² de área do Pará estão sob influência da seca em algum nível. 

Em Tefé, as plantas têm seus ciclos de frutificação, perda e nascimento de folhas em processos ligados ao clima e as cheias da região. Porém, o cenário agora na região da bacia do rio Solimões é de seca. “Muitas espécies têm dispersão de frutos ligados às cheias. Se essas cheias não acontecem, como isso vai afetar as plantas? E os animais que dependem dos frutos dessas plantas?”, questiona Darlene Gris, pesquisadora do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.

Darlene também pontua outra característica da relação da flora com as cheias: a captura de carbono. “Se as cheias são modificadas, como vai ficar o ritmo desse processo? A gente trabalha aqui no nosso grupo com modelagem para entender o que as mudanças climáticas podem ocasionar na floresta”, explica. 

O aumento da temperatura e a diminuição das chuvas, por exemplo, fez com que algumas espécies chamadas de “generalistas” expandissem suas áreas de ocorrências. “Elas vão acabar tomando o espaço de outras áreas florestais”, relata, “e o contrário é também possível: espécies mais sensíveis podem deixar de existir”.

Para Darlene, o tempo de estudo dos impactos dos eventos extremos sobre a fauna e flora é longo, primeiro pela falta de mãos em monitorar impactos cada vez mais frequentes, segundo pela análise a longo prazo. “Não é só a questão da mortandade de animais e plantas. Tem efeitos que vão demorar para aparecer, por exemplo, os ciclos biogeoquímicos”, afirma. 

Se fogo e estiagem alteram o equilíbrio socioambiental, as enchentes também mudam paisagens e ciclos naturais. Ainda se contabiliza os impactos das fortes chuvas do primeiro semestre no Rio Grande do Sul, mas análises já mostram a migração de peixes e anfíbios, carregados para fora de seu habitat com a força da água. 

As inundações trazem impactos variados à biodiversidade: mamíferos terrestres podem até saber nadar, mas não conseguem por um longo período de tempo. Anfíbios e répteis são melhores nadadores, mas a força das correntezas acaba afogando eles. Já os insetos são os mais vulneráveis. Para alguns, a fauna aquática do Rio Grande do Sul, em geral, levará até dois anos para se recuperar. 

Já o solo é outra história. Segundo Valério De Patta Pillar, professor do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da UFRGS, o processo erosivo na região foi tamanho que deve-se levar décadas, até séculos, para se recuperar. “É de uma outra ordem de magnitude, não é o tempo que leva para crescer e restaurar a vegetação”, afirma. 

Valério aponta que a água adquiriu força e volume muito grande nas partes altas da bacia do Taquari que, sem cobertura da vegetação nativa, carregou campos de commodities, em especial, de soja. Análises posteriores mostram que o lado menos preservado do Vale do Taquari foi o mais atingido e que a vegetação nativa poderia ter reduzido o impacto da catástrofe.

As variações climáticas são normais e fazem parte do ciclo biológico das plantas e animais. Porém, o que vemos atualmente é a acentuação desses eventos, promovidos especialmente pela queima de combustíveis fósseis e desmatamento. Não há espaço para a natureza se regenerar. Os distúrbios ecológicos que vemos acontecer nos últimos anos no Pantanal, Amazônia e Pampa são reflexos de um todo, expresso na última atualização do “Planeta Vivo 2024: Um Sistema em Perigo”, da ong WWF. 

O mundo perdeu 73% da biodiversidade em 50 anos, a América Latina e o Caribe registraram as maiores quedas médias nas populações de animais selvagens, com uma impressionante redução de 95%. Não há mais tempo, ações de proteção à fauna e flora são urgentes. 

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