
O governo defende a expansão da exploração de petróleo e gás – combustíveis fósseis que agravam o aquecimento global – apesar da grave crise climática e dos eventos climáticos extremos já enfrentados pela população. Uma das justificativas falaciosas utilizadas frequentemente diz que a atividade precisa continuar para financiar a necessária transição energética.
Além de ser uma contradição em termos, se o argumento fosse real, seria de se esperar que pelo menos a Petrobras, a maior petrolífera do Brasil e cujo controle acionário está nas mãos do governo, contribuísse efetivamente para a transição energética. A realidade é bem diferente.
Para entender por que é falso justificar a exploração de petróleo como fonte de financiamento da transição energética, é preciso entender de onde vem e para onde vai a receita da atividade petroleira na União, e como ela é atualmente aplicada. Também é necessário olhar os investimentos que a Petrobras faz em transição energética em casa.
Até o momento, não existe um plano de transição que pudesse ser financiado e tampouco rubricas orçamentárias dedicadas a este fim, e o que a Petrobras destina para ações genéricas chamadas de “transição” é menos de 10% do que ela planeja investir em óleo e gás.
Quanto $$ do petróleo vai para a União?
Parte importante do lucro das petroleiras é reinvestida na própria operação de óleo e gás fóssil. Outra parte vira dividendos dos acionistas. No caso da Petrobras, seu último plano estratégico pretende reinvestir cerca de 40% do fluxo de caixa operacional e distribuir cerca de 30% em dividendos até 20291.
Uma parte das receitas de todas as petroleiras que operam no país vai para a União, especificamente para o Fundo Social do Pré-Sal e para o Tesouro Nacional. Outra parte vai para estados e municípios.
Sobre as receitas das petroleiras que vão para a União, essas se originam de:
- Royalties e participações especiais:
Royalties são compensações financeiras, pagas pelas empresas que exploram petróleo e gás natural para a União, estados e municípios, pelo direito de utilizar esses recursos naturais; já a participação especial é uma compensação extra no caso de campos com grande volume de produção ou alta rentabilidade.
- Comercialização do excedente em óleo de contratos em regime de partilha:
Os contratos de partilha prevêem que a União tem direito a uma parte do petróleo e do gás extraídos. Foi criada uma empresa para gerenciar esse petróleo e vendê-lo no mercado.
- Impostos e outras contribuições:
Os principais são o imposto de renda de pessoa jurídica (IRPJ2); as contribuições Cofins, PIS e PASEP3 e a CIDE-combustíveis. Em menor escala são geradas receitas atreladas a eventos como leilões (bônus de assinatura).
No caso particular da Petrobras, a União recebe dividendos por acionista majoritária na empresa e, portanto, ter direito a sua parcela no lucro. A outra parcela vai para os demais acionistas privados.
Os valores variam de ano para ano. Em 2023, a União recebeu de todo o setor de óleo e gás cerca de R$ 240 bilhões, dos quais aproximadamente 40% vieram dos royalties, outros 40% do recolhimento de impostos e contribuições, 15% dos dividendos da Petrobras, 2% da venda do petróleo dos contratos de partilha e o restante das eventuais receitas atreladas.
Como a União aplica o $$ do petróleo?
A arrecadação de impostos e contribuições vai para o Tesouro Nacional e é regida pelo Orçamento Geral da União.
Os demais recursos do petróleo e do gás vão para o Fundo Social, criado em 2010 na onda da descoberta do pré-sal com a “finalidade de constituir fonte de recursos para o desenvolvimento social e regional”.
O fundo recebe:
• Uma parte dos bônus de assinatura dos contratos em regime de partilha;
• A parcela da União dos royalties; e
• Receita da venda de petróleo, de gás natural dos contratos de partilha.
O Tribunal de Contas da União (TCU) estima que o Fundo Social receberá quase R$ 900 bilhões entre 2023 e 2032.
Apesar de ter como objetivo apoiar programas de desenvolvimento social, parte da receita tem sido usada pela União há vários anos para ajudar a equilibrar as contas públicas. A Medida Provisória 1.291, de 2025, ampliou seu uso, incluindo categorias novas: habitação e infraestrutura social, mitigação e adaptação às mudanças climáticas e a seus efeitos e de enfrentamento das consequências sociais e econômicas de calamidades públicas.
A determinação vem na esteira das enchentes históricas que atingiram o Rio Grande do Sul em 2024. Ou seja, parte do dinheiro do petróleo agora será destinado a resolver problemas que o próprio petróleo causa, sendo que melhor seria que os problemas nem mesmo existissem.
Algum $$ do petróleo vai para transição energética?
Uma pequena parte do Fundo Social é destinada ao Fundo Nacional sobre Mudança do Clima, que surgiu em 2009 para apoiar ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas.
O Fundo Clima, como é mais conhecido, recebe recursos de diversas fontes, incluindo uma parte das participações especiais, compensações extras pagas pela exploração de campos de grande volume ou alta rentabilidade.
Entre 2011 e 2022, o Fundo Clima recebeu cerca de R$ 2,5 bilhões, dos quais R$ 1,8 bilhão (72%) vieram dessas participações especiais. No período, o fundo ofereceu recursos a fundo perdido gerenciados pelo Ministério do Meio Ambiente (R$ 0,4 bi) e outros reembolsáveis sob a responsabilidade do BNDES (R$ 2,1 bi).
De 2018 até o início de 2025, os projetos na área de transição energética e clima receberam menos de R$ 1 bilhão.
Se, grosso modo, o Fundo Social, alimentado por dinheiro do petróleo e gás, recebe algo na ordem de R$ 200 bilhões anualmente, então, no período de 2018 até o início de 2025, o recurso destinado para projetos ligados à transição energética representa 0,06% – ou seja, nada.
Vale ressaltar que os recursos que os impostos e contribuições pagos ao Tesouro Nacional compõem o Orçamento Geral da União. O orçamento de 2025 passou pelo Congresso e prevê receitas totais de R$ 5,89 trilhões. Há uma rubrica para a transição energética, na qual foram alocados pouco mais de R$ 1,9 bilhão, o que corresponde a 0,03% do total. Esta é a importância da transição para o governo: zero vírgula nada.
A Petrobras investe na própria transição energética?
Em 2023, a Petrobras criou a Diretoria de Transição Energética e Sustentabilidade para coordenar “as atividades de descarbonização, mudanças climáticas, novas tecnologias e sustentabilidade”. Ironicamente, a diretoria também é responsável pelas atividades de comercialização de gás fóssil.
Apesar do objetivo da diretoria, o plano estratégico 2025-29 da empresa, que prevê investimentos de US$ 111 bilhões, destina quase 90% para a exploração e o processamento de mais petróleo e gás, enquanto pouco mais de 10% são destinados para biocombustíveis e gás fóssil com ênfase neste último, que também contribui para o agravamento das mudanças climáticas. Assim, ao contrário dos discursos, uma transição real e ambiciosa ainda fica de fora do planejamento da empresa.
E os acionistas privados?
Por fim, vale lembrar que a Petrobras distribuiu nos últimos cinco anos quase R$ 490 bilhões em dividendos e juros sobre o capital de ações ordinárias e preferenciais. Deste total, a União recebeu quase 29%, enquanto que os acionistas privados receberam quase 62% e o BNDES, 8%.
Não há indícios de investimentos na transição energética por parte dos acionistas privados.