Tragédia no RS: governos federal e do RS divergem sobre soluções para crise climática

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Mauricio Tonetto/Palácio Piratini

Cidades provisórias e canal ligando a lagoa dos Patos ao mar geram embate entre Executivo gaúcho e governo federal, mas especialistas criticam as duas propostas

Com as águas do lago Guaíba e da lagoa dos Patos começando a recuar, ainda que timidamente, a recuperação do Rio Grande do Sul diante da catástrofe climática começa a ganhar mais contornos. Mas as primeiras ideias já criam conflito entre os governos gaúcho e federal. E são criticadas por especialistas.

De um lado, o governador Eduardo Leite anunciou a implantação de 4 “cidades transitórias”, cada uma capaz de abrigar até 7.500 pessoas, para receber desabrigados. As estruturas devem ter lavanderia, cozinha comunitária, dormitórios, banheiros e espaços para crianças e animais de estimação.

A proposta é questionada pelo ministro para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, Paulo Pimenta, informa o Correio Braziliense. “Isso é maior do que a grande maioria das cidades do Brasil. Temos outra concepção, outra ideia. Esse é o grande debate, como o poder público oferece dignidade e condição para que as pessoas façam uma transição adequada até voltarem a ter uma casa”, disse Pimenta, sem, contudo, detalhar a proposta federal.

Do outro lado, o governo Lula resgatou um projeto antigo: a abertura de um canal ligando a lagoa dos Patos ao mar além de sua saída, no extremo sul do estado, para acelerar o escoamento das águas em situações de cheia. A ideia foi anunciada pelo ministro dos Transportes, Renan Filho, nos últimos dias.

O governador gaúcho é contra a obra, informa O Globo, que além de difícil execução, fará o mar interferir na lagoa. “Não basta pensar na água da lagoa escoando para o mar. O mar também interfere na lagoa. Se tiver água salgada acessando água doce, vai ter riscos aos ecossistemas e até a captação da água para consumo humano”, afirmou Leite.

Os Executivos federal e gaúcho já deram vários sinais de que divergem entre si não apenas nessas mas em outras “ideias” sobre a recuperação do RS. No entanto, conseguem um ponto de convergência entre vários especialistas: as duas propostas publicizadas são muito, muito ruins.

Pesquisadora do Observatório das Metrópoles, Márcia Falcão é contra as “cidades transitórias”. Primeiro, porque a proposta sequer foi debatida com membros de movimentos de moradia. Depois, porque não garante Direitos Humanos básicos para os desabrigados, explica ao Brasil de Fato.

“Elas não têm estruturas de educação, saúde, nem acesso a transporte coletivo para que as pessoas possam minimamente retomar suas vidas. Entendemos que a situação é extraordinária, mas, ainda assim, alocar pessoas em grandes acampamentos é a pior solução”, frisou.

Especificamente sobre a “cidade provisória” de Porto Alegre, a instalação no Porto Seco da cidade seria problemática por sua grande distância do local de origem das famílias, que viviam no centro histórico, avalia Betânia Alfonsin, doutora em Planejamento Urbano pela UFRJ e diretora-geral do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU). Além disso, “reunir 10 mil pessoas em um único lugar em barracas improvisadas no meio de um inverno gaúcho é uma proposta que está muito longe do ideal de cidade”, afirma.

Para a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), tais cidades são uma “proposta segregatória”, destaca o Poder 360. A crítica procede porque mostra mais um elo do racismo ambiental que a tragédia gaúcha, como tantas outras catástrofes climáticas no país, escancarou, reforçam Karina Macedo Fernandes e Sabrine Tams Gasperin em artigo no Brasil de Fato: “para muitos dos atingidos, essa não foi a primeira e provavelmente não será a última tragédia que os atingirá”. Um estudo do Observatório das Metrópoles mostra que as áreas mais atingidas na Grande Porto Alegre são aquelas que reúnem mais pessoas de baixa renda, mostra o g1.

Quanto ao canal na lagoa dos Patos, cientistas do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) e do Instituto de Biociências (IBIO) da UFRGS criticaram a proposta. O vice-diretor do IBIO, Luiz Malabarba, afirma que a proposta é “uma solução mágica” e que pode causar ao menos três frentes de impacto: a salinização da água, a erosão do solo e ameaçar as espécies que vivem no ecossistema da região, destaca o g1.

“Esse tipo de obra exige estudos detalhados, com uma visão multidisciplinar e interdisciplinar para avaliar os impactos positivos e negativos. A abertura de uma nova barra envolve riscos elevados: erosão das praias; salinização do Guaíba e da Lagoa do Casamento; efeitos negativos sobre o ambiente, a sociedade e a economia, afetando a navegabilidade e a produção agrícola. Há que considerar que teria elevados custos de implantação e manutenção, com operação complexa”, frisou o IPH, em nota publicada pelo IHU.

Até a manhã de 3ª feira (21/5), a catástrofe climática no RS havia matado 161 pessoas, com 85 ainda desaparecidos, com 806 pessoas feridas, detalha o SBT.

Em tempo: A catástrofe climática no RS é o efeito colateral do desmonte da legislação ambiental brasileira, reitera a coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo. Em entrevista ao Valor, a ex-presidente do IBAMA menciona o “Pacote de Destruição”, que reúne 25 projetos de lei e três emendas em diferentes estágios de tramitação no Congresso que flexibilizam políticas de proteção ambiental. Esses projetos “refletem o negacionismo e a visão atrasada sobre legislação ambiental”, reforçou. Em entrevista ao Roda Viva repercutida pelo Valor, o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, negou ser negacionista. E repetiu algumas vezes que não se omitiu diante das mudanças climáticas – embora tenha alterado quase 500 normas ambientais no primeiro ano de seu governo, em 2019.

 

 

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ClimaInfo, 22 de maio de 2024.

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