Defenda Vanessa

Vanessa Nakate (esquerda) foi cortada em foto divulgada pela agência Associated Press

Vanessa Nakate é tão imprescindível quanto Greta, mas você não sabe disso porque ela é africana (manchete da revista Forum)

Texto traduzido do blog Helenvironmental

O escândalo da Associated Press nos forneceu, acidentalmente, a metáfora visual perfeita para o preconceito existente nos países ricos para com o Sul Global, e esta luta está longe de terminar.

 
Estamos em 2020, e o racismo está vivo e passa bem – e segue matando pessoas.
 
Nada do que aqui é dito é novo ou revolucionário; vozes marginalizadas têm dito isto com muito mais conhecimento e eloquência há muito. No entanto, mais pessoas dizendo torna mais provável que as demais ouçam sobre isso. A questão do racismo na sociedade ocidental tem causado sofrimento muito além do mencionado neste texto, e embora este seja sobre a crise climática e o racismo, os impactos do racismo na crise climática também são muito mais profundos do que se pode escrever aqui.
 
Na 6ª feira, 24 de janeiro, Vanessa Nakate completava três noites acampada no Artic Basecamp a fim de participar no Fórum Econômico Mundial em Davos. Sujeitar-se a condições desconfortáveis e pouco familiares para chamar a atenção dos líderes para a situação de todo um continente era algo que Vanessa estava preparada para fazer, especialmente porque ela estava ciente de que teria de se esforçar muito para chamar a atenção para a crise na África, que é sistematicamente esquecida na cena mundial. No entanto, Vanessa não esperava que sua luta fosse tão cruelmente apagada da história pela mídia, esta que não pensou duas vezes em cortá-la de uma foto com os seus colegas ativistas. A ação da Associated Press causou indignação, mas este incidente serve como representação adequada da luta que ativistas e comunidades marginalizadas tiveram que suportar por gerações. Vanessa disse-o perfeitamente: retirá-la da foto foi mais do que retirar apenas uma pessoa; foi retirar todo um continente, e dos mais afetados pela crise climática e ecológica.
 
Se dermos à AP o benefício da dúvida, e acreditarmos plenamente na sua desculpa segundo a qual a fotografia foi publicada sem a Vanessa por causa de um edifício de má aparência, ficaremos frente a um problema mais profundo. O fato de ninguém na AP ter tido problemas em retirar Vanessa – que é uma defensora vocal da Bacia do Congo e da crise climática na África – da fotografia mostra que a imprensa ainda não compreende a verdadeira dimensão da crise climática.
 
A realidade é que a Emergência Climática está atingindo mais duramente os lugares de onde menos ouvimos falar. Se a mídia se preocupasse com a sobrevivência da civilização, então saberia disso, e estaria fazendo mais para dar plataforma às vozes que vivenciam a crise em primeira mão. A razão pela qual não ouvimos falar disto é porque o sistema global é inerentemente racista e, o que é mais preocupante, é aquele que se safa de ser racista.
 
O racismo é mais do que preconceito racial; ele depende do desequilíbrio de poder e resulta em sistemas de opressão contra o grupo discriminado. Quando ouço “racista”, imagino automaticamente um homem ou mulher de pele branca, de média idade (bem, corado) com excesso de peso e inteligência abaixo da média, que usa abertamente a ‘palavra-N’, e que diz muito “orgulho branco”; o tipo de pessoa a quem se escarnece sarcasticamente. Estamos habituados a que o racismo seja definido por estes termos, e a maioria das pessoas o condena abertamente. Isso faz com que aqueles que estão no topo da dinâmica do poder sintam que nós “vencemos” o racismo de alguma forma, e nos atrai para uma falsa sensação de segurança de que desafiar pessoas exteriormente racistas é tudo o que precisa ser feito.
 
No entanto, o racismo está vivo e bem de saúde, escondido em lugares difíceis de se ver, comandando os cordéis dos procedimentos globais. Podemos vê-lo no regime de Trump [e Bolsonaro], no resultado da votação do Brexit, na reação ao Coronavírus. Mais preocupantes, porém, são os lugares em que normalmente não o vemos, porque isso torna muito mais difícil de desafiar.
 
A atenção maciça que Vanessa ganhou quando desafiou corajosamente a imprensa por tê-la tirado da foto foi um exemplo de uma época em que este racismo mais subversivo puxou demasiado por uma corda e foi exposto. A mídia se apressou em chamar a atenção para esse racismo ostensivo, mas seu relativo silêncio sobre a crise climática na África é a prova da existência de um outro tipo de racismo, este mais insidioso. O contínuo fracasso em relatar as realidades da crise climática no Sul Global mostra o silenciamento sistemático do sofrimento das comunidades marginalizadas, o que leva ao trauma e ao desespero.
 
“Vanessas” de todo tipo têm sido apagadas há gerações; qualquer ativista ou comunidade que tenha falado sobre os efeitos diretos da crise climática em suas vidas tem sido largamente ignorada até muito recentemente.
 
Se os países poderosos do Ocidente não operassem com sistemas que tinham o racismo neles entrelaçado, então estaríamos ouvindo quando o Lago Chade começou a secar, ou quando as comunidades indígenas na América do Norte tiveram sua água potável contaminada, ou quando a indústria madeireira começou a assassinar os protetores indígenas da floresta Amazônia. Talvez se nossas sociedades valorizassem toda a vida humana igualmente, teríamos nos preocupado quando a crise climática começou a morder a África. Teríamos sabido, se tivéssemos ouvido. Mas, em vez disso, as vozes que falavam, tentando nos informar, tentando nos avisar, foram silenciadas e apagadas, assim como Vanessa quase o foi. E enquanto Vanessa Nakate foi apoiada por tantas pessoas depois de a sua história ter sido contada, inúmeras outras Vanessas foram silenciadas irreversivelmente pelo racismo insidioso que ainda assola as nossas sociedades.
 
O fato é que, se o Ocidente valorizasse as vidas de todos acima do crescimento econômico exponencial, a crise climática nunca teria se agravado ao ponto atual. Na verdade, provavelmente nunca teria acontecido. Se o desequilíbrio de poder global fosse balanceado, se as pessoas nos governos com bacharelado em economia não equiparassem vidas negras e marrons a vidas com menos valor do que o combustível sólido preto e marrom, então teríamos agido de forma significativa como reza a ciência já há muito tempo.
 
Na situação atual, as pessoas que oferecem apoio a Vanessa durante esta horrível provação não são suficientes para expor o racismo que muitas vezes não vemos tão abertamente. Quando vemos que um ativista ugandês foi cortado de uma foto, vemos uma representação visual do sistema que cortou a África da conversa durante tanto tempo quanto esta existiu, mas não vemos todos os outros ativistas de todas as comunidades marginalizadas que foram tão sistematicamente silenciados durante tanto tempo. Nós não ouvimos as suas histórias.
 
As vozes marginalizadas devem estar à frente e no centro da conversa climática, mas não cabe aos ativistas colocarem-se lá; se queremos sobreviver a esta crise, então a responsabilidade é nossa. Um ativista com uma mensagem tão importante não deve ser recortado e jogado para o final da fila.
 
Junte-se a Vanessa Nakate, e defenda as Vanessas de todo o mundo.

 

ClimaInfo, 28 de janeiro de 2020.

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