Nota do Instituto ClimaInfo sobre o projeto de lei da Comissão Especial de Transição Energética e Produção de Hidrogênio, da Câmara dos Deputados

Hidrogênio Verde H2
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Câmara dos Deputados deve votar PL criando arcabouço legal para produção de hidrogênio verde, mas a que custo, em que tempo e com que água?

Se tem um termo que virou moda nos últimos anos entre formuladores de políticas e de investimentos é transição energética. Grosso modo, significa parar de queimar combustíveis fósseis – carvão, petróleo, gás – e privilegiar fontes renováveis – vento, água, Sol.

Colocando a discussão no contexto brasileiro, as vantagens para o país são óbvias. Há incidência de sol e vento em abundância no território, e 62% da nossa eletricidade vem de hidrelétricas. As oportunidades de criação de um mercado exportador de energia “verde” são tantas que suplantaram o notório negacionismo climático e a incompetência administrativa do governo anterior, colocando o país entre um dos possíveis grandes players desse mercado emergente.

Nesta conjuntura, uma comissão especial na Câmara dos Deputados está em vias de votar um projeto de lei que cria um arcabouço legal para a produção de hidrogênio verde, produzido a partir de altas descargas elétricas (nesse caso, vinda da renováveis) na água, e que poderia alimentar indústria e veículos daqui e do exterior.

É aqui que o potencial esbarra em vícios brasileiros tão presentes no Congresso Nacional. Por exemplo, o projeto cria subsídios altos e sem limite de tempo para empresas que desejem investir nesses setor. Esse custo, claro, sai dos cofres da União e pode, como de hábito, cair no colo dos consumidores de energia.

Esse e outros vícios parecem ter a mesma origem: o lobby de setores privados e sua presença maciça nos corredores de Brasília, e uma tendência quase atávica de legisladores de contemplar tais interesses por mais absurdos que sejam.

A começar pelo nome do PL: em vez de hidrogênio verde, a comissão inventa um “hidrogênio sustentável”, forma pra lá de torta de contemplar fontes fósseis que têm sido jogadas no Sistema Interligado Nacional (SIN) pelos lobbies que atuam no Congresso. Isso inclui um jabuti incluído na lei que privatizou a Eletrobras, e que abriu espaço para a inclusão de térmicas a gás inflexíveis. Segundo o IEMA, isso significa mais 20 milhões de toneladas de carbono equivalente por ano. 1

Se a intenção da transição energética é aposentar os combustíveis fósseis, não é preciso ser gênio para enxergar conflito de finalidade. O limite proposto pelo PL coloca em risco a viabilidade comercial do hidrogênio brasileiro em mercados externos, que demandam o hidrogênio verde. Segundo o Fórum Econômico Mundial, o hidrogênio verde deve emitir entre 48-58 kWh/kgH2.2 Considerando a média de 53 kWh/kgH2, isso implica um fator de emissão de carbono da rede menor do que 0,0755 kgCO2e/kgH2.

Olhando para o fator de emissão do SIN, publicado pelo MCTI desde 2006, em 10 dos 17 anos ele esteve abaixo deste patamar. Ou seja, se a produção de H2 estivesse acontecendo desde 2006, em 7 dos 17 anos ele não passaria pelo crivo europeu, o que pode frustrar os sonhos de governadores do Nordeste, que vêm no hidrogênio verde um grande potencial de desenvolvimento industrial.

O descaso generalizado com a segurança das pessoas, do meio ambiente e das necessidades sociais é outro ponto de preocupação. O texto discorre longamente sobre a produção e o uso do hidrogênio, mas quase não trata sobre seu armazenamento, transporte e manuseio, por exemplo. Este é um material altamente explosivo. Mesmo a amônia, derivado do hidrogênio bastante utilizada para o transporte e outros fins, pede cuidados especiais, considerando sua toxicidade.

Nem cadeira para a sociedade civil, tirando Academia, é contemplada no conselho proposto para “estabelecer as competências, as diretrizes e atribuições” da política de hidrogênio. Por outro lado, há três cadeiras para representantes do setor produtivo.

Outro fator que mostra o apagamento das questões sociais no PL trata-se do uso da água, principal ingrediente dessa receita e que pode potencialmente criar conflitos com outros usos, especialmente o abastecimento humano. O tema é especialmente importante considerando que existem regiões no Brasil que sofrem historicamente com escassez hídrica, notadamente o Nordeste, num cenário que deve piorar com o agravamento das mudanças climáticas.

Fortaleza é um bom exemplo: seus moradores temem que a instalação de uma fábrica de hidrogênio no Complexo de Pecém reduza a disponibilidade para a cidade. Segundo a FIEC, a intenção é estabelecer um sistema de aproveitamento do esgoto da capital cearense, o que seria inclusive mais barato para a indústria. 

A discussão que acontece no Ceará já demonstra como contendas podem acontecer. O PL indica, sabiamente, que a fonte preferencial deve ser água de reuso ou dessalinizada, mas não crava. Pior: indica a prioridade de concessão de outorga para a produção de hidrogênio.

A produção de hidrogênio não pode estar associada a outras interferências negativas nos sistemas ecológicos e humanos, considerando os conceitos estabelecidos de sustentabilidade, respeito ao meio ambiente e aos demais Direitos Humanos e aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

É preciso qualificar a transição energética. Para responder ao maior desafio que a humanidade enfrenta hoje, a emergência climática, ela precisa ser justa e inclusiva, considerando em mesmo pé de igualdade as necessidades e os impactos nas pessoas e no meio ambiente. Não cabem aqui floreios semânticos sobre o que é verde, muito menos achar que a vida se resume a gigawatts e que incorporar o gás fóssil no processo cria condições para a transição.

Na tentativa de contemplar todos os lobbies, o PL tem jeito de Frankenstein e, tal qual o personagem do século 19, tem cheiro de passado. De nada adianta o Brasil querer abraçar as oportunidades do século 21 se quem faz as leis não está pronto para abrir mão de vícios antigos. 

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  1. https://energiaeambiente.org.br/wp-content/uploads/2023/09/NOTA-TECNICA-JABUTIS-DO-GAS-_Coalizao.pdf
  2. https://www.weforum.org/agenda/2023/03/understand-carbon-footprint-green-hydrogen/

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ClimaInfo, 6 de novembro de 2023.

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