Relatório com diagnóstico e orientações marca encerramento de grupo de trabalho com a missão de “reformar” fundos de financiamento climático
O Brasil começa a se despedir da presidência do G20. Uma liderança que assumiu prometendo focar no combate às desigualdades sociais e à crise climática.
Assim como nas Conferências da ONU, as negociações dependem de consenso total para avançar, mas no G20, elas ocorrem a portas fechadas, sendo difícil tomar o pulso das tratativas. Isso torna os balanços finais momentos ainda mais importantes. Vamos descobrir em breve o que o Brasil conseguiu entregar para o processo do G20, que será liderado em 2025 pela África do Sul.
Esta semana três negociações climáticas estão concluindo seus trabalhos no Rio de Janeiro: o Grupo de Trabalho de Finanças Sustentáveis (SFWG), que entregou seu relatório final na 3ª feira (10/9); a Iniciativa de Bioeconomia, com reunião final na 4ª feira (11/9); e a Força Tarefa de Clima criada por sugestão do Brasil, que faz seu balanço na 6ª feira (13/9).
O ClimaInfo conversou com Ivan Oliveira, subsecretário de Financiamento ao Desenvolvimento Sustentável do Ministério da Fazenda e coordenador do SFWG. Ele descreveu com entusiasmo os acordos obtidos em negociações que priorizam a desburocratização do acesso a quatro fundos verdes: GCF (Green Climate Fund), CIFs (Climate Investment Funds), GEF (Global Environment Facility) e Fundo de Adaptação.
Oliveira disse acreditar que os recursos mais baratos desses fundos podem catalisar investimentos maiores, na escala das atuais necessidades de financiamento climático. E mostrou confiança no alinhamento com os sul-africanos nos temas que foram prioridade para o Brasil.
Confira a entrevista exclusiva:
Cínthia Leone – A prioridade do Grupo de Trabalho sobre Finanças Sustentáveis do G20 (SFWG) era desburocratizar o acesso aos quatro principais fundos climáticos. A presidência brasileira do G20 vai conseguir entregar isso?
Ivan Oliveira – O G20 no Brasil iniciou um processo para que isso aconteça. Esse é um grupo diferente dos demais, é um grupo que tem um relatório único, consolidado, de todas as entregas. A nossa ideia é sair do Rio de Janeiro com esse relatório, aprovado por todos os grupos, ou seja, consensuado, para que seja encaminhado para os vice-ministros, os deputies, que terão reunião em Washington em 21 e 22 de outubro, seguidos pela reunião dos ministros em 23 e 24. Ou seja, o pacote do que será discutido lá será fechado aqui.
A gente já consegue dizer que teremos um apoio substantivo do G20 para dar início a esse processo de desburocratização de acesso aos Fundos verdes [GCF, CIFs, GEF e Fundo de Adaptação].
Qual foi a parte mais difícil para negociar o fim desses entraves?
Para esses quatro fundos as avaliações são variadas. Antes de eu chegar em específico em cada caso, é importante explicar o processo, que contou com 12 especialistas selecionados no mundo inteiro. A gente destacou para coordenar este grupo o Josué Tanaka, um franco-brasileiro de origem japonesa, com uma boa conexão com o G20. Ele teve a função fundamental de, junto com os demais 11 membros, montar um relatório independente de avaliação desses Fundos.
Esse relatório foi feito em várias camadas. A camada inicial é mais abrangente e aborda como a arquitetura de financiamento climático funciona e quais as implicações de missões e objetivos desses Fundos. Descendo, chegamos a como funciona a acreditação e, então, como se dá a mobilização de capital. E temos ainda a governança dos Fundos, algo que a gente abordou pouco. Você tem cinco camadas nessa avaliação, e a última e central porção é como cada fundo opera.
Essa abordagem, do abrangente para o específico, foi feita de forma bem coordenada para que a recomendação para cada fundo tenha alguma conexão com a questão mais abrangente, que é como o próprio sistema – a arquitetura de financiamento climático – funciona hoje no mundo.
De concreto, o que a gente vai fazer é reduzir o tempo que se leva para o encaminhamento e a aprovação de um projeto e que mais entidades sejam acreditadas. Hoje no Brasil a gente só tem o BNDES acreditado junto ao GCF, e a Caixa está no finalzinho de um processo de acreditação. Então para créditos concessionais, com acesso direto e se for doação, a gente só tem um banco acreditado junto ao GCF.
Esse cenário faz com que boa parte dos projetos que a gente tem com o GCF hoje seja via bancos multilaterais e em programas multi-país. Com isso, há um fraco Country Ownership, que é como a gente chama a conexão com as necessidades reais do país.
Então é preciso ter mais entidades acreditadas, um processo mais encurtado, e as necessidades do país sendo levadas em consideração. Isso fará com que o recurso chegue na ponta de forma rápida. Se clima é urgente, não se pode esperar quatro, cinco anos para receber um recurso.
Então há também uma harmonização de procedimentos entre esses fundos?
A ideia é estimulá-los para que haja mais harmonização, por exemplo, em acreditação. Não tem porque uma acreditação do GCF ser muito diferente dos demais. O bom é que o contexto é muito propício. Tanto no GCF quanto no CIF há duas novas dirigentes, duas mulheres, que estão liderando uma agenda de reforma. Ou seja, já há um processo nos próprios fundos para que eles consigam ser mais ágeis e úteis. O G20 dá agora o apoio político para que isso aconteça de forma rápida. E temos a COP de Belém como uma boa meta para a entrega de uma implementação robusta.
Então o prazo que vocês estão usando para a entrega deste diagnóstico não é o G20 do Brasil, mas COP no ano que vem?
Não é apenas um diagnóstico, mas um relatório robusto do que precisa ser feito. Então a gente sai daqui não apenas com uma série de recomendações apoiadas pelo G20, mas também com mais trabalho a fazer para garantir que as recomendações sejam implementadas e que isso seja reportado pelo próprio Presidente [Lula] ao longo do ano que vem.
Os Fundos estão sob pressão também no sentido de que são US$ 30 bilhões que eles precisam investir nos próximos cinco anos – o dinheiro já está alocado.
A impressão é que o acesso dos países em desenvolvimento a esses fundos é dramático. Não é todo país em desenvolvimento que tem um BNDES. Se já é difícil para o Brasil, com um BNDES, imagina para quem não tem um banco de fomento similar. Esse relatório que será entregue agora consegue levar essa discussão para um outro patamar?
Sobre o relatório de especialistas, o que é importante destacar é que são pessoas que conhecem muito do operacional desses fundos – missão, vinculações, o histórico de uso dos recursos e os problemas de implementação. Então, esse grupo foi muito importante para ter esse mapeamento robusto. O resultado é que nunca antes na história do G20 se conseguiu avançar tão rápido e tão bem. Rápido porque esse grupo foi montado no início da nossa presidência. Tivemos que conversar, moldar e barganhar para poder ter um grupo relevante de especialistas. Esse grupo começou a trabalhar em março, e em agosto gerou esse relatório.
Não é sempre que você consegue fechar em uma só presidência alguma coisa dessa envergadura. O framework para os bancos laterais precisou de duas presidências – da Indonésia e da Itália – para poder conseguir consolidar no G20 uma agenda substantiva.
Dessa vez, chegamos ao Rio de Janeiro em setembro com relatório consolidado, com amplo apoio do G20. O desafio agora é implementar. Esse é o processo que se inicia a partir do Rio. É fazer com que as recomendações de fato sigam os conceitos diretivos dos fundos, e eles comecem o processo interno de reformas.
Você disse que tratou-se pouco da questão de governança. As dificuldades de acesso não estariam relacionadas exatamente a problemas de governança, com menos representação dos países em desenvolvimento?
A questão da governança é sensível, porque esses fundos são muito diferentes entre si e porque seria infringir um pouco os limites até onde o G20 pode ir. Para garantir que essa agenda seja implementada, é importante não ir além do mandato e não começar a entrar demais no detalhe específico do que está na Convenção das Nações Unidas. A gente tocou na governança de uma forma indireta, como no caso da avaliação das políticas internas de cada fundo.
Vale lembrar que a gente está dando o empurrão político no G20. Quem vai implementar as reformas são os fundos, por isso é importantíssimo o processo que começará depois da entrega que a gente faz agora. Queremos fazer na COP em Baku um evento com os próprios fundos e a presidência brasileira do G20 e aproveitar essa relevância para provocar essa mudança.
Já que você mencionou a COP29, é impossível falar da reforma dos fundos verdes sem relacioná-la com a necessidade de financiamento climático e da natureza na escala que o mundo precisa hoje. Você já adiantou que a escala desses quatro fundos – US$ 30 bilhões em 5 anos – é pequena diante do desafio. Mesmo quando a gente estava falando em US$ 100 bilhões por ano, eles só pagariam um percentual modesto. Agora a gente tá falando de necessidades que somam US$ 1 trilhão ao ano. Houve alguma conversa sobre aumentar a escala de financiamento dessas instituições?
Essa é a conversa de Baku, é o núcleo duro da negociação da COP29. O G20 não entrou nisso, mas uma coisa que a gente discutiu muito, não só nesse grupo de Finanças Sustentáveis, mas também no grupo que estuda reformas dos bancos multilaterais de desenvolvimento, além da própria Força Tarefa de Clima, é que a gente precisa usar esses recursos mais baratos ultra concessionados para catalisar muito mais recursos em geral. É por aí que vamos chegar nos trilhões de dólares de que a gente precisa. Então é verdade que os US$ 30 bilhões representam pouco no geral, mas se você usar de forma mais catalítica, consegue alavancar muito mais.
Um exemplo: no Brasil, a gente tinha um projeto de integração de energia renovável e US$ 70 milhões do CIF. A gente conseguiu alocar em dois projetos específicos, US$ 35 milhões para cada. Em um deles, esse recurso muito barato – com juros de 1% ao ano – entrou justamente na parte mais arriscada do projeto, que era fazer a infraestrutura crítica para produção de hidrogênio verde no Porto de Pecém, no Ceará. O resultado é uma das maiores alavancagens da história do CIF, já que aqueles US$ 35 milhões iniciais acabaram por viabilizar um projeto de US$ 9 bilhões no total.
Então, para chegar nos trilhões, não será só contar com o dinheiro público que está nos fundos, mas usar esses recursos de forma mais estratégica para alavancar investimentos. E os países precisam ter suas necessidades levadas em conta nesse processo. É isso que está por trás da ideia de plataformas de país que a gente vem discutindo na Força Tarefa de Clima – um sistema no qual várias instituições de financiamento podem se conectar para que os interesses dos países sejam viabilizados.
Eu sinto que os analistas ainda não têm clareza do papel dessas plataformas de países que estão sendo muito abordadas nas negociações de finanças climáticas.
Essa pode ser uma das soluções para um problema muito grande que a gente tem hoje na América Latina, inclusive no Brasil. Uma boa parte dos recursos do GCF estão em programas multipaíses. Por exemplo, o GCF autoriza uma proposta de US$ 300 milhões para financiar saneamento na Amazônia e pergunta se os países têm interesse. A princípio, qualquer país dirá que sim. Só que muitas vezes o projeto demora três, quatro, cinco anos para acontecer – muitas vezes nem acontece. Então se dá ao banco multilateral uma função predominante na conexão do país com o projeto e no uso desses recursos que não leva em conta o que o país quer. O que a gente está reforçando no relatório do G20 é levar as prioridades dos países e garantir acesso direto.
O Brasil tem dito que o problema do financiamento de clima e da natureza é o custo de capital para os países em desenvolvimento. O uso mais estratégico desse dinheiro barato que vem dos fundos ajudaria a resolver isso?
No nível dos projetos, é exatamente isso. Quando você pluga GCF, Banco Mundial, mais recurso do BNDES, por exemplo, você está trazendo para baixo o custo de capital de um projeto. Isso pode viabilizar projetos até maiores, ou mesmo projetos menores que tenham dificuldade de atrair capital privado, como projetos ligados à biodiversidade.
O trabalho realizado com esses quatro fundos entrega alguma coisa em temas urgentes das negociações que temos pela frente, por exemplo, para a transição energética e para financiar a natureza?
Totalmente, mas eu diria que para energia é bem mais forte, porque os países doadores em geral priorizam esse tema. Na declaração conjunta da Janet Yellen [secretária de Tesouro dos Estados Unidos] e do ministro [da Fazenda, Fernando] Haddad em julho, eles mencionam especificamente como usar melhor os fundos climáticos, particularmente os CIFs, no financiamento da transição energética brasileira e nas cadeias de valor atreladas a este processo.
No caso das soluções baseadas na natureza, ela foi uma das prioridades da presidência brasileira, e o que nós estamos entregando neste tema é uma espécie de caixa de ferramentas, com uma sistematização de abordagens que deram certo em várias partes do mundo – são 12 casos. São instrumentos bem diversos, e todos foram explorados em profundidade. Assim o país pode decidir quando e quanto aquela solução seria útil e replicável. E isso ainda conecta com a agenda de assistência técnica, facilitando o entendimento dos instrumentos financeiros.
Tudo isso foi feito num contexto em que o conceito de transição justa foi norteador. Não é só pensar em mitigação, só em redução de CO2. Tem que ser “justa”, ou seja, ter um componente de responsabilidade social conectado com isso, porque a gente já sabe que as pessoas mais vulnerabilizadas serão também as mais impactadas no curso da crise climática.
Pela primeira vez no Brasil estamos falando de adaptação. E a razão é justamente a escala dos impactos que já nos atingem. Você acha que um país como o nosso vai conseguir acessar mais os recursos de adaptação.
Quem mais faz financiamento da adaptação é o GCF. O Fundo de Adaptação em si é pequeno. Ele foi pensado para ser financiado por mercados de carbono, o que não deu certo. E ele tende a continuar pequeno, porque concorre por recursos com outros fundos, mais estabelecidos. Uma vez que a gente tenha agora fundos mais ágeis, os países podem conseguir mais recursos para adaptação. O ponto essencial é o impacto local – materiais mais resistentes, mais resilientes, construção diferente e adequação de projetos. A gente vai ter inclusive que repensar as nossas próprias políticas públicas. Tudo isso é custo adicional nos processos, e está difícil envolver o setor privado.
O projeto Sertão Vivo é um exemplo que eu adoro usar, porque se conseguiu fazer ali um uso integrado de recursos do GCF, doações e empréstimos, recursos do BNDES, dos governos estaduais, ou seja, um bendito blended finance , mas da melhor forma possível. O projeto tem um impacto substantivo na região onde ele vai se desenvolver e que é voltado particularmente para uma agenda de adaptação. Mas, para a gente replicar isso, os recursos dos fundos tem que chegar rápido. O Sertão Vivo demorou 7 anos.
E como será essa passagem de bastão para a África do Sul? Este tema continua sendo abordado sob a nova presidência do G20?
Já tivemos algumas conversas com a África do Sul, e eles apresentarão esta semana suas prioridades. A agenda de implementação das recomendações deste trabalho está garantida. E é muito provável que, por exemplo, o tema de adaptação ganhe ainda mais atenção. No fundo, uma presidência do G20 complementa a outra de uma forma muito positiva, dando as suas prioridades nesse processo de construção coletiva. Temos total apoio da África do Sul naquilo que é prioritário para o Brasil. E será fundamental seguir com uma agenda de implementação forte durante a presidência deles, para que a gente chegue à COP em Belém com uma percepção forte sobre as entregas.
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Por Cinthia Leone, Coordenadora Internacional do ClimaInfo.
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ClimaInfo, 11 setembro de 2024.
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