
Em novembro de 2022, durante a COP28 no Egito, em meio às celebrações pela vitória eleitoral, o então presidente eleito Lula aceitou a sugestão do governador do Pará, Helder Barbalho, para realizar a COP30 na cidade de Belém – a COP da Amazônia, como tanto se falava. A proposta tinha um peso simbólico evidente, pela importância da maior floresta tropical do planeta para o clima global, mas desde o começo exigia muita cautela e planejamento por parte das autoridades. Em meio a aplausos, muitos brasileiros veteranos das negociações climáticas já indicavam o tamanho do abacaxi: fazer uma COP no Brasil seria desafiador por si só, mesmo que fosse nas grandes metrópoles, como São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília. Em Belém, esse desafio seria ainda maior – como estamos vendo agora.
Quem já participou de uma das COPs da Convenção do Clima sabe que é uma experiência extenuante – bem, ao menos se você estiver realmente acompanhando as negociações como observador ou jornalista, ou participando delas como negociador. Por duas semanas, salvo um domingo, você passa de 10 a 12 horas do dia (ou mais, dependendo do seu azar) preso na Zona Azul, chegando bem cedo e saindo muito tarde, entrando e saindo de salas de negociação, matando sua meta de 10 mil passos diários somente com as andanças do período da manhã, parando para comer alguma coisa (em geral, algo sem gosto e caro), passando por pavilhões, espiando eventos paralelos (especialmente aqueles que têm comida), trombando com alguma manifestação (ou fazendo parte dela).
Como a desgraça nunca é demais, na medida em que o tempo passa, as tensões e as frustrações da própria negociação também se avolumam. Os problemas ficam simples, de tanto que você pensa neles, mas as soluções são cada vez mais complexas: tira vírgula do texto, põe parêntese, recupera aquela nota de rodapé de um esboço de texto divulgado lá no começo das negociações, pensa em algum termo rocambolesco que não fala exatamente aquilo que você quer/não quer, mas dá a entender que sim/não para convencer alguma delegação mais chata…
Ao final do dia, você sai como se tivesse sido atropelado por uma carreta-cegonha carregada de SUVs. A cada dia, o cansaço aumenta – e, junto com ele, a cota de sono reprimido. No dia seguinte, tudo de novo. Até chegar ao final – o que é imprevisível, já que as COPs não costumam terminar dentro do seu prazo regulamentar. Ou seja, é bastante provável que você fique mais algumas horas, ou mais um final de semana, preso às negociações.
Só de escrever esses parágrafos, me deu vontade de ir pro meu quarto. Ah. o quarto: ele é um oásis de silêncio, onde você passa algumas poucas horas descansando e tentando recarregar o que for possível de energia para o dia seguinte. É a única coisa que se assemelha, ainda que miseravelmente, a um lar durante aquelas semanas de esgotamento. A cama, que se transforma em escritório/sofá/mesa de refeição quando não está sendo usada para o sono, é o único porto seguro.
Fiz essa digressão com a esperança de mostrar, dentro do possível, a experiência de estar em uma COP – e por que raios estamos ouvindo essa gritaria dos últimos dias sobre hospedagem na COP30 em Belém. A menos de 100 dias do evento, essa é uma constatação devastadora: hoje, muitas das dezenas de milhares de pessoas esperadas para visitar a capital paraense em novembro não têm onde ficar. Para quem se prepara para a maratona das negociações, não ter o seu porto seguro garantido é assustador.
Esse não é um problema repentino nem inédito. Em geral, a hospedagem sempre dá alguma dor de cabeça para os países anfitriões. Na COP25 de Glasgow, em 2021, o governo britânico também ouviu desaforos de delegações por conta dos preços salgados de hotel. Na COP 26 no Egito, em 2022, a reclamação foi similar, acrescentada por episódios de assédio sofridos por alguns participantes (especialmente mulheres) em hotéis e estabelecimentos comerciais na cidade.
Desde o começo, antes mesmo da capital do Pará ser confirmada como sede, a disposição do governo federal em realizar a COP30 na Amazônia levantou dúvidas acerca da capacidade das grandes cidades da região receberem o evento. Quando a escolha foi feita, há mais de um ano, a promessa das autoridades federais e paraenses era de que tudo seria feito para garantir que todos teriam hospedagem durante a Conferência: novos hotéis seriam construídos, instalações existentes seriam adaptadas, hospedagens privadas seriam incentivadas e facilitadas, com reservas concentradas em um portal único oficial, a preços acessíveis a todos os tipos de participantes.
No entanto, infelizmente, as coisas não aconteceram como anunciado. O portal de reservas demorou meses para ficar pronto; foi ao ar somente na semana passada, depois da pressão das delegações estrangeiras sobre o Brasil. Ao menos numericamente, os leitos prometidos estão sendo disponibilizados, mas a qualidade deles não é a esperada e os preços estão muito, mas muito mesmo, acima do normal.
Isso afeta a todos os participantes da COP30, mas é particularmente devastador para os pequenos países insulares e as nações menos desenvolvidas, que precisam de custeio parcial da própria ONU para conseguir mandar seus negociadores para as Conferências. Sem falar na sociedade civil, especialmente a do Sul Global, que enxergava em Belém uma oportunidade para voltar a se expressar livremente depois de um ciclo de três COPs seguidas em países autoritários. Como ir a Belém se o custo da hospedagem, em alguns casos, é maior que o orçamento anual de muitas organizações?
Como pontuado no primeiro parágrafo, o problema da hospedagem em Belém era uma crise anunciada. Por isso, era de se esperar que as autoridades federais e paraenses responsáveis pela logística da COP tivessem planos de ação e de contingência para assegurar a negociadores, observadores e jornalistas que terão onde se hospedar. Como a reunião emergencial realizada na semana passada mostrou, ou esses planos não existem ou são insuficientes.
E agora? O embaixador André Corrêa do Lago, presidente-designado da COP30, deixou claro que não há possibilidade de realizar a COP30 em qualquer outra cidade senão Belém, ou da Conferência ser dividida com outra cidade. Mas ele cantou a bola: alguma coisa precisa acontecer para resolver o problema. Não há como escapar dele, ou esperar que a questão seja resolvida deixando tudo como está, para ver no que vai dar.
E quem precisa agir? O ministro Rui Costa da Casa Civil, onde foi criada a Secretaria Extraordinária da COP (SeCOP), e Helder Barbalho, governador do Pará. Eles são os responsáveis pela logística da COP30. A aposta até aqui foi transformar Belém em canteiro de obras, construir novos hotéis e reformar os existentes e adaptar outras estruturas, desde galpões industriais até escolas e prédios para habitação popular – ou seja, bater o número mágico de 50 mil leitos. De uma certa forma, isso está dando certo: de fato, a perspectiva é de que haja essa quantidade de vagas disponíveis durante a COP. O problema está nas condições e no preço desta oferta.
Os participantes da COP30 não são turistas, ao menos de forma geral. Os negociadores e os observadores são profissionais em viagem de trabalho, que passam horas a fio dentro de salas em meio a discussões bastante complexas, sob pressão de vários lados. A mesma coisa com os jornalistas, que correm o dia inteiro atrás de informações sobre as negociações. Mesmo os ativistas fazem uma jornada bastante cansativa de eventos paralelos, manifestações e debates. Nesse contexto, colocá-los em aposentos precários, sem segurança ou o mínimo de comodidade, é temerário.
Essa precariedade ganha ares de extorsão quando se vê os preços praticados em várias dessas acomodações. Como a imprensa vem destacando, alguns hotéis aumentaram suas tarifas em até 80 vezes, muito acima do esperado em eventos dessa magnitude. A “mão invisível” do mercado não se atreveu até agora a acionar o freio dos preços, pelo contrário – os setores hoteleiro e imobiliário seguem fingindo que esse não é um problema deles.
Para a COP30 realmente acontecer em Belém, o governo federal e o governo do Pará precisarão mexer nesses vespeiros. Sem uma resposta que atenda a essa demanda, o risco é de que tenhamos uma Conferência esvaziada, o que seria catastrófico para as negociações climáticas e constrangedor para o Brasil. Faltando 100 dias para a COP, essa ação não pode mais atrasar. Lula que fique esperto.
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(*) Bruno H. Toledo Hisamoto é especialista em política e economia internacional do Instituto ClimaInfo



