
Há um novo boom global dos biocombustíveis. O uso dessas fontes de energia cresceu sete vezes em vinte anos e já responde por cerca de 4% da matriz de transporte mundial. Segundo projeções internacionais, essa participação pode aumentar 40% até 2030, impulsionada por políticas nacionais e pelos novos padrões da Organização Marítima Internacional (IMO) e da Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO), que começam a exigir combustíveis menos intensivos em carbono.
Um novo estudo do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), realizado em parceria com o Observatório do Clima, traz uma afirmação ambiciosa: o Brasil pode mais do que dobrar sua produção de bioenergia até 2050, zerar o desmatamento em todos os biomas e ainda se tornar um país carbono negativo.
A projeção publicada na quinta (9) se apoia num dado central: há cerca de 100 milhões de hectares de pastos degradados, equivalentes a 12% do território nacional, e parte significativa dessa área pode ser convertida para bioenergia e recuperação ambiental sem pressionar florestas ou alimentos.
Dentro desse estoque, 55 milhões de hectares estariam disponíveis para uso agrícola — o que, segundo o estudo, é mais do que suficiente para acomodar a expansão da bioenergia prevista em qualquer cenário realista. Em quatro dos seis cenários analisados, a área necessária varia entre 20 e 35 milhões de hectares, mantendo intactos os objetivos de eliminar o desmatamento e restaurar ecossistemas.
No coração desse plano está uma cultura nova e promissora: a macaúba. Segundo a Embrapa, essa palmeira nativa produz muito mais óleo por hectare do que a soja, pode ser cultivada em sistemas agroflorestais e tem potencial para gerar diesel verde e combustível sustentável de aviação (SAF) com baixo impacto ambiental.
“Os biocombustíveis avançados trazem oportunidade para a reindustrialização brasileira a partir de uma nova cadeia de bioenergia”, Felipe Barcellos e Silva, um dos autores do estudo. “O diesel verde e o SAF são feitos em biorrefinarias, que demandam alta tecnologia, pessoal capacitado, e geração de empregos
Essa é uma visão radicalmente distinta da que domina o debate internacional. No mesmo dia em que o estudo brasileiro foi lançado, a ONG europeia Transport & Environment (T&E) publicou um briefing baseado em um estudo de 2024 com um tom bastante crítico, inclusive sobre como este tema será apresentado na COP30, em novembro.
A organização europeia alerta que 90% dos biocombustíveis globalmente ainda vêm de culturas alimentares, como milho, cana, soja e palma; e que a área ocupada por essas lavouras já equivale à uma França inteira. O estudo prevê que o setor poderá consumir 52 milhões de hectares de terras agrícolas e até 35 milhões adicionais apenas para abastecer o transporte marítimo — o equivalente ao território da Alemanha.
Mas o que a organização europeia vê como ameaça, o IEMA enxerga como oportunidade. Seu estudo mostra que o Brasil possui exatamente essa área, já degradada e mapeada, pronta para ser reabilitada sob novos critérios de uso do solo.O contraste entre as duas análises é informativo. O relatório europeu tem razão ao denunciar que a maior parte dos biocombustíveis do mundo ainda vem de culturas alimentares e que a transição energética não pode reproduzir o modelo de monoculturas intensivas. O erro está em assumir que essa é uma fatalidade global.
A diferença está na escala e no território, mas é também histórica. A Europa fala a partir de sua própria experiência — e ela, de fato, foi desastrosa. O programa europeu de biodiesel, lançado nos anos 2000, acabou associado à alta do preço dos alimentos e à expansão do óleo de palma na Indonésia e na Malásia. Hoje, mais de 60% do biodiesel consumido no continente é importado, e os mecanismos de rastreabilidade continuam frágeis.
Se é verdade que o planeta não tem terra suficiente para alimentar pessoas e motores ao mesmo tempo, o lugar onde essa equação pode ser resolvida é onde há terra degradada disponível e capacidade de governá-la com rigor. O estudo do IEMA parte justamente desse ponto: reconhece que a bioenergia demanda área significativa, mas propõe usar a transição energética como instrumento de restauração, com políticas de monitoramento, regramento do solo e salvaguardas socioambientais que façam dos biocombustíveis um vetor de regeneração e neoindustrialização.
Enquanto a Europa carrega o trauma de suas próprias escolhas, os Estados Unidos apostam no etanol de milho e a Ásia amplia a palma sobre florestas tropicais, o Brasil tem a chance de mostrar que existe um caminho tropical, competitivo e de baixo impacto para a bioenergia. O debate global, que se intensifica às vésperas da COP30, costuma oscilar entre o entusiasmo e a rejeição automática. E é fato que os biocombustíveis só terão mercado se forem comprovadamente sustentáveis. É justamente esse padrão de verificação e essa capacidade de unir produção e preservação em escala que o Brasil pode e precisa liderar.



