Roubo intergeracional

Duas gerações, duas mulheres, a mesma causa: a primatologista e especialista em conservação Jane Goodall, de 84 anos, e a jovem ativista climática Greta Thunberg, de 16 anos.

O capitalismo atual rouba dos jovens e dos que ainda não nasceram para dar a alguns poucos privilegiados mais velhos, é um roubo intergeracional. É hora de um novo sistema, que respeito seus direitos.

 

George Monbiot*

 

Os jovens que saíram às ruas na sexta feira (15/3) para a greve do clima têm razão: o seu futuro está sendo roubado. A economia atual é um gigantesco esquema de pirâmide ambiental que deixa suas responsabilidades para os jovens e os que vão nascer. O crescimento econômico atual depende deste roubo intergeracional.

 

No coração do capitalismo há um pressuposto vasto e mal examinado segundo o qual as pessoas têm direito a uma parte dos recursos do mundo tão grande quanto seu dinheiro pode comprar. Cada um de nós pode comprar tanta terra, tanto espaço atmosférico, tantos minerais, tanta carne e peixe quanto puder pagar, independentemente da privação de outros. Se você pode pagar, você pode possuir montanhas inteiras e planícies férteis. Pode queimar tanto combustível quanto quiser. Cada Real assegura um certo direito sobre a riqueza natural do mundo.

 

Mas por quê? Qual é o princípio segundo o qual os números da sua conta bancária equivalem ao seu direito de possuir o próprio tecido da Terra? A maioria das pessoas a quem pergunto ficam completamente perplexas. A justificativa-padrão remonta ao Segundo Tratado de Governo, de John Locke, publicado em 1689. Ele afirmou que o direito de possuir riquezas naturais é adquirido quando a elas é misturado o trabalho: os frutos colhidos, os minerais minerados e a terra cultivada se tornam propriedade exclusiva, porque trabalho foi ali adicionado.

 

Este argumento foi desenvolvido no século XVIII pelo jurista William Blackstone, cujos livros foram muito influentes na Inglaterra, na América e em outros países. Ele argumentava que o direito de um homem ao “domínio único e despótico” sobre a terra foi estabelecido pela pessoa que primeiro a ocupou para produzir alimentos. Este direito poderia então ser trocado por dinheiro. Esta é a lógica subjacente ao grande esquema piramidal. E não faz sentido.

 

Para começar, Blackstone assume um ano zero. Neste momento arbitrário, uma pessoa poderia pisar sobre um pedaço de terra, misturar a ele seu trabalho e reivindicá-lo como seu. Locke usou a América como exemplo da página em branco sobre a qual as pessoas poderiam estabelecer seus direitos. Mas aquela terra (como ele mesmo admitiu) veio a se tornar uma página em branco apenas depois do extermínio daqueles que ali viviam.

 

O colonizador não só pode apagar todos os direitos anteriores, como também pode apagar todos os direitos futuros. Ao misturar seu trabalho à terra, o homem e seus descendentes adquiririam o direito perpétuo a ela, até que a decidia vender. Assim, aquele homem impede que todos os futuros reclamantes adquiram riquezas naturais pelos mesmos meios.

 

Pior ainda, de acordo com Locke, o trabalho deste homem inclui o trabalho daqueles que para ele trabalham. Mas porque é que as pessoas que executam o trabalho não devem ser as que adquirem os direitos? Isso só pode ser compreendido se nos apercebermos de que, por “homem”, Locke entende não toda a humanidade, mas os proprietários europeus. Aqueles que para estes trabalhavam não tinham tais direitos. No final do século XVII, isto implicava que os direitos fundiários em grande escala só podiam ser justificados pela posse de escravos. Talvez inadvertidamente, Locke produziu uma carta dos direitos humanos dos detentores de escravos.

 

Mesmo que estas objeções pudessem de alguma forma ser descartadas, o que dizer da ideia de o trabalho transformar magicamente em propriedade privada tudo o que toca? Por que não estabelecer seu direito à riqueza natural mijando sobre ela? Os argumentos que defendem o nosso sistema econômico são frágeis e absurdos. Retire os adereços e perceba que toda a estrutura se baseia na pilhagem: pilhagem de outras pessoas, pilhagem de outras nações, pilhagem de outras espécies e pilhagem do futuro.

 

No entanto, com base nestes absurdos, os ricos se arrogam ao direito de comprar a riqueza natural da qual outros dependem. Locke advertiu que sua justificativa só funcionaria se “houvesse o suficiente, e tão bom quanto, para ser deixado em comum para os demais”. Mas neste planeta superpopulado, quer se trate da terra, da atmosfera, dos sistemas vivos, dos depósitos minerais ou da maioria das outras formas de riqueza natural, é evidente que não há “suficiente, e tão bom” para ser deixado em comum. Tudo o que para nós tomamos, tiramos de outra pessoa.

 

Você pode talvez ajustar este sistema. Você pode procurar modificá-lo. Mas é impossível torná-lo justo.

 

Então, o que deve ocupar o lugar deste sistema? Parece-me que o princípio fundador de qualquer sistema justo é prever que aqueles que ainda não nasceram terão, ao nascer, os mesmos direitos daqueles que hoje estão vivos. À primeira vista, isto não parece mudar nada: o primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Mas esta afirmação é quase sem sentido, porque não há nada na declaração que impeça uma geração de roubar da próxima. O artigo que falta poderia ser algo como “Cada geração terá o mesmo direito ao gozo da riqueza natural.”

 

Este princípio é difícil de contestar, mas parece mudar tudo. Imediatamente, ele nos diz que nenhum recurso renovável deve ser usado além da sua taxa de reposição. E que não devem ser utilizados recursos não renováveis que não possam ser totalmente reciclados e reutilizados. Isto conduz inexoravelmente a duas grandes mudanças: a uma economia circular, na qual os materiais nunca são perdidos, e ao fim da queima de combustíveis fósseis.

 

Mas e a própria terra? Neste mundo densamente povoado, toda a propriedade de terra exclui necessariamente a propriedade de outros. O artigo 17 da Declaração Universal é autocontraditório. Ele diz: “Todo mundo tem o direito à propriedade”. Mas como não impõe limites à quantidade que uma pessoa pode possuir, garante que todos não tenham esse direito. Eu o mudaria para: “Todos têm o direito de usar a propriedade sem infringir os direitos de uso de outros.” A implicação é que todos os nascidos hoje adquiririam um direito igual de uso, ou precisariam ser compensados por sua exclusão. Uma forma de implantar isto seria por meio de impostos pesados sobre a terra, pagos a um fundo soberano de riqueza. Isto alteraria e restringiria o conceito de propriedade e asseguraria que as economias tendessem à distribuição e não à concentração.

 

Estas simples sugestões levantam mil questões. Não tenho todas as respostas. Mas estas devem ser objeto de conversas animadas em todos os lugares. Prevenir o colapso ambiental e o colapso sistêmico implica desafiar nossas crenças mais profundas e menos examinadas.

 

* George Monbiot é colunista do jornal inglês The Guardian. A versão original deste artigo, em inglês, pode ser encontrada aqui.