Transporte urbano não leva em conta desigualdade de gênero

mobilidade urbana gênero

97% das mulheres no Brasil já sofreram algum tipo de assédio sexual no transporte público

Tatiane Matheus (*)

Todos deveriam ter direito à cidade, ao usufruto do espaço urbano e acesso aos serviços públicos disponíveis. Mas, na prática, diferentes barreiras limitam o usufruto do espaço urbano e dos serviços públicos. Uma destas barreiras é imposta pelas políticas de transporte público “neutras”, que não levam em conta as diferentes necessidades e os diferentes padrões de uso de homens e mulheres.

As mulheres são a maioria entre os usuários de ônibus na região metropolitana de São Paulo, segundo levantamento feito pela pesquisadora Haydée Svab – “Evolução dos padrões de deslocamento da região metropolitana de São Paulo”. No metrô, elas passaram a ser maioria a partir de 1997.

A dinâmica de mobilidade dos homens costuma ser mais linear: da casa para o trabalho. Já a mulher, em geral, por ser quem é majoritariamente responsável pelas atividades parentais e familiares, faz mais viagens pela cidade para levar os filhos para escola, fazer compras, cuidar dos idosos da família etc.. Logo, elas fazem várias viagens, curtas, longas e diversas, e em vários horários distintos. O custo das passagens, a baixa qualidade do transporte público, a baixa integração entre os distintos modais de transporte, as más condições das calçadas, entre outros problemas da mobilidade  urbana, impactam mais as mulheres, sobretudo daquelas que moram nas periferias.

Ainda, de acordo com Haydée Svab, as mulheres fazem mais deslocamentos a pé do que os homens. A Pesquisa de Mobilidade na Região Metropolitana de São Paulo, conduzida pelo Metrô, revelou que 34% das mulheres se deslocam a pé pela cidade contra 28% dos homens. E um estudo realizado pela organização Mobilize Brasil concluiu que nenhuma das 27 capitais brasileiras oferece boas condições para a circulação de pedestres em suas calçadas, ruas e faixas de travessia. Inclusive, há uma quantidade enorme de ruas que nem calçadas têm.

Claro que a melhoria da circulação das mulheres nas cidades não virá apenas da melhoria das calçadas, mas estas são de fundamental importância para a segurança em geral. Entretanto, as mulheres além de serem mais suscetíveis a assaltos, correm também risco de outras violências. De acordo com pesquisa realizada em 2019 pelos institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, 97% das brasileiras já sofreram algum tipo de assédio sexual no transporte público.

Mudanças no clima tendem a acirrar os problemas já vividos pelas pessoas, e as mulheres estarão mais vulneráveis do que os homens, já o aquecimento global deve aumentar os esforços femininos pelos cuidados com a casa e com familiares, segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Os impactos das mudanças no clima serão ainda maiores para as mulheres negras e pobres, por conta da distribuição desigual do acesso a recursos (capital, físico, financeiro, humano, social e natural) na sociedade: negras e pobres terão menor acesso aos recursos necessários para a adaptação às mudanças climáticas. Também são esperados aumentos da incidência de doenças transmissíveis e da desnutrição como consequência da redução da oferta de alimentos, além de mudanças nos padrões de incidência de alergias e doenças respiratórias. O aumento destas doenças aumentará a demanda pelo cuidado feminino, o que sobrecarregará ainda mais o dia a dia das mulheres e intensificará a demanda por mobilidade voltada às tarefas de cuidado.

A baixa representatividade das mulheres brasileiras em cargos públicos se reflete na ausência de políticas públicas que levam em conta a desigualdade de gênero. Segundo informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) 2019, o número de mulheres no Brasil é superior ao de homens. A população brasileira é composta por 48,2% de homens e 51,8% de mulheres. Porém, no ranking de representatividade feminina no Congresso, por exemplo, o Brasil ocupa a 134ª posição entre 193 países pesquisados, com 15% de participação de mulheres. São 77 deputadas em um total de 513 cadeiras na Câmara, e 12 senadoras entre os 81 eleitos, de acordo com o Mapa Mulheres na Política 2019, um relatório da Organização das Nações Unidas e da União Interparlamentar.

De acordo com as recomendações da Nova Agenda Urbana, da ONU Habitat, é necessária uma abordagem multidisciplinar para a diminuição da violência e da insegurança. É primordial que haja mais mulheres incluídas nos espaços de tomada de decisão para a formulação de políticas públicas em mobilidade urbana.

Abrir a escuta às reivindicações daquelas que mais vivenciam a desigualdade territorial e a violência institucional é urgente para a solução dos problemas da mobilidade urbana de forma inclusiva e para uma retomada verde econômica e social.

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(*) Tatiane Matheus é jornalista e pesquisadora no ClimaInfo.

ClimaInfo, 15 de outubro de 2020.

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