Uma Outra Negação Climática

negação climática

Se este novo mundo que estamos construindo é um mundo no qual você pode agir pelo clima enquanto mantém sua intolerância, então não há lugar para mim.

Por Mary Annaïse Heglar

Recentemente encontrei-me numa sala cheia de escritores e cientistas climáticos. Muitos de nós só nos conhecíamos por meio das nossas navegações e no Twitter. Assim, a manhã foi cheia de apresentações animadas que terminaram em mais abraços do que apertos de mão.

Subi com rapadura e café e tomei meu lugar em um painel de duas pessoas sobre todas as formas como falamos e não falamos sobre a crise climática. Eu estava lá para representar os escritores do clima e meu copainelista para representar os cientistas do clima.

Esses eventos são um atrativo na comunidade climática. Durante o ano passado, estive em mais destes painéis do que consigo lembrar. Seria fácil decodificá-los como exercícios insulares e masturbatórios na pregação aos convertidos. Mas a verdade é que, até nós, a ‘Congregação do Clima’, temos muito o que discutir. Precisamos falar.

Quando a sessão se aproximava do fim, o meu copainelista, um branco afável e atencioso, fez uma pergunta que eu sabia que estava a caminho. Eu sabia que ela viria mesmo que ele não tivesse compartilhado outras perguntas antes, porque ela aparece com muita frequência, de diferentes formas.

A pergunta é mais ou menos assim: “O que você diz às pessoas que dizem que conectar as mudanças climáticas com a questão do racismo pode afastar pessoas que, de outra forma, poderiam estar do seu lado?”

Eu suspirei e resmunguei uma resposta, uma que eu já a dei em várias versões, embora nunca tenha ficado satisfeita.

Eu queria ficar brava com a pergunta. Queria até mesmo estar cansada dela. Mas a verdade é que… ela machuca.

 

Não do meu lado

Embora haja muito nesta pergunta que me preocupe, é a inocência dela que me assombra. Eu sei que meu copainelista não concorda com a pergunta. Ele só queria criar o espaço para abordar o assunto. Na verdade, eu quase nunca ouço esta pergunta vinda de alguém que realmente acredite nela.

Em vez disso, a ouço em segunda mão e quase exclusivamente de homens brancos, que a ouviram de outros homens brancos, e que jamais a diriam diretamente para mim, porque não me dizem nada diretamente, porque geralmente nunca falam comigo. Isso me deixa extremamente irritada com o que os homens brancos, que detêm tanto poder, dizem uns aos outros em particular.

Então, minha resposta curta é: eu não diria nada a eles porque não teria esta oportunidade.

Também já ouvi diferentes desdobramentos deste argumento em toda parte, desde as épicas rixas no Twitter até as plataformas presidenciais: “A crise climática tem apenas a ver com a ciência. É um fenômeno físico com um relógio marcando o tempo. Afeta a todos, não apenas a algumas pessoas, e isso toma o lugar de todos os outros assuntos. Portanto, não macule minha preciosa política climática com suas políticas de identidade encardidas. Vamos falar disso mais tarde.”

Estas pessoas não estão, em hipótese alguma, “do meu lado.”

 

O novo negacionismo climático

Sim, a maneira como o dióxido de carbono interage com a atmosfera é uma simples questão física. Mas não se pode parar por aí – não se você acreditar que as mudanças climáticas sejam produzidas pelo homem.

É preciso examinar as histórias do desmatamento e da infraestrutura de combustíveis fósseis e, se você fizer isso honestamente, acaba chegando ao colonialismo e à escravidão, e verá que a crise climática está intrincadamente entrelaçada ao racismo estrutural e à desigualdade econômica, e ao patriarcado, e assim por diante.

Acho quase impossível olhar para a crise climática sem ver as consequências de todas as vezes que os brancos disseram aos negros: “Esperem um pouco, voltaremos a isso mais tarde”. Para se confortarem com uma “mudança incremental” e não “irem longe demais”. Para se contentarem com um band aid nas feridas abertas.

Então, desculpem se meus ouvidos estão moucos. Desculpem-nos se nos recusamos a colocar o colete salva-vidas primeiro em vocês, quando vocês são os menos afetados pelas inundações. Já nos afogamos em paciência por tempo suficiente.

Além disso, esta suposta dicotomia entre a política climática e a justiça social tem-se revelado falsa, vez atrás de vez. Até não poder mais. Então, se não conseguem ver as conexões, é porque não querem ver.

Em outras palavras, se a sua aceitação da crise climática parar na ciência e não abranger as verdadeiras raízes da exploração econômica e social, você está sendo intencionalmente obtuso. Sua situação privilegiada está embaçando sua visão. Você, meu caro amigo, está em negação.

No contexto climático, pensamos no “negacionismo” como rejeição da ciência. Mas a crise climática já não paira sobre um horizonte distante. Ela saltou dos jornais científicos, passando pelas manchetes, para as nossas próprias portas. Está literalmente queimando nossas casas. Quem quer que argumente que as mudanças climáticas não são “reais” não está apenas rejeitando a ciência. Está se dissociando da realidade. (e isso é tema para outro ensaio completamente diferente).

E aqueles que, por outro lado, negam as verdadeiras raízes da crise diante de provas copiosas do contrário? Agora, isso sim é negação. Um fato é um fato, afinal de contas. Assim, negar a história é tão ruim quanto negar a ciência.

E, infelizmente, muitas vezes isso parte de pessoas inteligentes, com verdadeiras “boas intenções verdes”, algumas delas inclusive com suas capas de heróis do clima. São pessoas “sérias” que querem seriamente enfrentar a crise climática. Não é que não percebam tais conexões, é que eles as evitam.

Essa é a parte que mais dói: o negacionismo vem de dentro de casa.

 

Quem vale o sacrifício

A questão é a seguinte: as pessoas que pensam que as soluções climáticas não precisam estar ligadas à justiça social são as mesmas que lamentam a ausência de negros no movimento climático. No entanto, essas mesmas pessoas parecem não se constranger em apontar a esses já marginalizados que, já que se preocupam com “políticas de identidade” (seu bizarro codinome para “direitos humanos”), deveriam se preocupar com o clima também. Mas não há espaço para as duas coisas.

Ao mesmo tempo em que ouço esses argumentos automáticos de homens brancos invisíveis, também ouço de negros no movimento climático que estão cansados de serem marginalizados e silenciados – ou pior, transformados em mascotes. Então, massacrados e esgotados, deixam de lado o ativismo climático. Não posso dizer que os culpo, ou que nunca pensei em me juntar a eles.

Cada negro que se afasta do movimento climático leva consigo cartilhas de quase todos os movimentos sociais de sucesso de nossa memória recente. Uma incomensurável sabedoria geracional.

Tudo em detrimento das pessoas que têm menos responsabilidade pela situação, os que frequentemente passam pelo problema há mais tempo. Adivinha quem não podemos perder neste momento?

 

Um mundo totalmente novo

A crise climática está num momento crítico agora, assim como o movimento climático. Precisamos decidir quem somos e o que queremos construir. Está claro para todos nós que precisamos construir um mundo totalmente novo, mas que tipo de mundo será esse?

Se é um mundo no qual você pode agir pelo clima e manter sua intolerância, então não há lugar para mim. Meus antepassados construíram um país inteiro onde não existia lugar para eles. Acho que eles não me perdoariam se eu fizesse o mesmo. Nem deviam me pedir isso.

Afinal, um mundo no qual resolvemos o clima, mas deixamos intactos os sistemas racistas e exploradores que criaram a crise, não é, na verdade, um mundo em que resolvemos o clima. E não é um mundo em que eu esteja a salvo.

Qualquer movimento que permita que as pessoas façam parte tanto do problema como da solução não é um movimento, mas uma estagnação. Separar a “ação climática” da “justiça climática” é separar a nossa existência da nossa humanidade. Eu, por exemplo, não tolero nada disso.

 

ClimaInfo, 27 de fevereiro de 2020.

Se você gostou desse artigo e se interessa por receber o boletim diário completo do ClimaInfo, clique aqui para recebê-lo em seu e-mail.

x (x)
x (x)
x (x)
x (x)