RenovaBio e a COVID-19: futuro (in)certo?

Frente aos impactos já observáveis da COVID-19 sobre o mercado de combustíveis e a produção de etanol, é importante não perder os avanços institucionais já alcançados pelo programa RenovaBio. É necessária uma reflexão sobre a modulação das metas sem gerar “prejuízos irreparáveis”, de modo a manter os níveis de desempenho ambiental.

Luan Santos[1], Ana Carolina Angelo[2], Carolina Grangeia[3], Thamara França[4] e Larissa Emerick[5]

Em dezembro de 2017, foi sancionada a Lei nº 13.576/2017 que criou a Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), cujos pilares visam ao atendimento dos compromissos do Brasil no âmbito do Acordo de Paris. A política também inclui mecanismos para Avaliação do Ciclo de Vida, comercialização e previsibilidade do mercado de combustíveis, além do aumento do uso dos biocombustíveis, apoiando na segurança energética e na redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE).

Entretanto, em meio à pandemia da COVID-19, diversas questões emergem sobre como ocorrerá a implementação do programa RenovaBio – cujo início de seu processo de comercialização é esperado para este mês de abril – frente à queda nacional das vendas de combustíveis, e quais os reais impactos desse cenário macroeconômico para o atingimento das metas obrigatórias do programa. Vale ressaltar que além da COVID-19, este início de 2020 foi marcado por uma guerra de preços entre a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) e a Rússia, a qual impactou diretamente o mercado sucroenergético. Nesse sentido, o presente artigo busca analisar o cenário atual e as perspectivas (in)certas do RenovaBio no contexto da COVID-19, trazendo algumas reflexões e possíveis desdobramentos para o programa no período pós-pandemia.

Análises das (in)certezas

A política estabelece metas anuais de redução de emissões de GEE por meio da comercialização de créditos de descarbonização (CBIOs) entre produtores/importadores e distribuidores/investidores, correspondendo cada CBIO a uma tonelada de CO2eq retirado da atmosfera. Para que os CBIOs sejam gerados, os produtores/importadores passarão por uma certificação, que engloba a contratação de uma empresa que fará a varredura do biocombustível produzido desde a compra do insumo, a partir do cálculo da intensidade de carbono, utilizando uma ferramenta de apoio denominada RenovaCalc. Desta maneira, será atribuída uma Nota de Eficiência Energético-Ambiental ao produtor a partir dos dados do seu processo produtivo por meio do cálculo da diferença entre a intensidade de carbono e a intensidade de carbono de seu combustível fóssil substituto[1].

As metas nacionais de descarbonização estabelecidas pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) desdobram-se em metas individuais para cada distribuidor de combustível, definidas pelo seu market-share das vendas de combustíveis fósseis do ano anterior[2]. Para 2020, a meta anual é de 28,7MM de CBIOs[3]. Assim, as partes obrigadas (distribuidores) participarão da comercialização dos CBIOs por meio da bolsa de valores, e este título será tratado como “ativo ambiental” segundo o Ministério de Minas e Energia (MME). Caso não atinjam a meta estabelecida, a multa pode chegar a R$ 50 milhões, podendo inclusive gerar perda do direito à venda de combustíveis, além da meta não atingida ser acumulada para o ano seguinte[4].

Ocorre que a COVID-19 e o petróleo barato estão atingindo o setor de combustíveis em todo o mundo, não apenas no Brasil. No início de abril, 30 plantas processadoras de etanol de milho foram fechadas temporariamente nos Estados Unidos, até que haja melhoria das margens[5]. Além disso, os preços de mercado vêm caindo substancialmente ao longo dos últimos dois meses de acordo com a Figura 1.

Figura 1 – Comportamento das Curvas de Preços (jan/2020 – abr/2020)

Fonte: Elaboração própria com base em CEPEA/ESALQ[6] e Investing[7]

*Nota: CIF Paulínia, sem ICMS e sem PIS/Cofins  
1: 23 de janeiro, Quarentena de Wuhan, China

2: 6 de março, colapso nas negociações OPEP e Rússia

3: 9 de março, Itália declara quarentena nacional

4: 11 de março, OMS declara pandemia da COVID-19

5: 22 de março, estado de São Paulo decreta quarentena

6: 2 de abril, Arábia Saudita convoca OPEP para discutir preço do petróleo

Conforme os dados apresentados na Figura 1, os impactos nacionais da COVID-19 sobre o setor sucroalcooleiro têm sido severos. A Raízen, uma das maiores distribuidoras de combustíveis do Brasil, declarou força maior em contratos de compra de etanol de usinas locais, enquanto a BR Distribuidora, a maior do setor, disse que identificou a necessidade de flexibilizar volumes, garantindo que não haverá cancelamento dos contratos de etanol[8]. Além disso, a maioria das usinas de etanol no Brasil já iniciou a colheita e a moagem de cana-de-açúcar, enquanto em meados de abril ainda mais unidades entram em operação, elevando a oferta de etanol. Como a cana já está amadurecendo, as usinas não têm como opção a interrupção da colheita e a produção.

Com este cenário de queda na demanda por combustíveis e dificuldades de previsibilidade de consumo agora e no pós-crise, questiona-se a manutenção das metas estabelecidas pelo RenovaBio, pois, o setor não sabe se a comercialização de biocombustíveis deve gerar um volume suficiente de CBIOs e nem se as distribuidoras terão condições financeiras para comprá-los. Outro ponto, é a situação financeira dos produtores, haja vista as quebras contratuais já mencionadas, e medidas para contenção da COVID-19 que delimitam recursos humanos e a produtividade agrícola como um todo. Já se discute o corte da meta prevista de redução de emissões de GEE para este ano em ao menos 25%, em função da pressão das distribuidoras, algumas das quais propõem a suspensão da meta para 2020[9]. Vale ressaltar que a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) acredita que a geração de CBIOs será suficiente para o cumprimento das metas deste ano, no entanto, a meta foi considerada em um cenário sem interferências, ou seja, sem considerar o atual panorama da COVID-19[10].

Destaca-se ainda que o caráter inovador do Renovabio, materializado pela ferramenta RenovaCalc, a qual permite distinguir aqueles produtores que investem na melhoria do desempenho ambiental de seus processos, também se encontra potencialmente comprometido pela crise da COVID-19. A contabilização das emissões de GEE é feita com base na Avaliação do Ciclo de Vida (ACV), considerando os potenciais impactos ambientais desde a extração dos recursos naturais para produção de matérias-primas até o fim de vida do produto (do berço ao túmulo). No caso do programa, o túmulo do produto refere-se à roda, adotando-se, portanto, a fronteira do sistema do “poço/campo à roda”. No entanto, devido à clara redução de investimentos e quebras de contrato em todos os níveis de fornecimento da cadeia de valor de combustíveis, desenha-se no curto prazo um cenário de elevada incerteza, comprometendo a intensidade de carbono (IC) do biocombustível.

Como exemplo, podemos citar as análises de sensibilidade aplicadas aos produtores de cana de açúcar presentes em um estudo publicado no VI Congresso Brasileiro sobre Gestão do Ciclo de Vida[11]. As análises mostram que a IC pode aumentar cerca de 18% em situações de baixa produtividade agrícola (80 x 60 t/ha). O uso de fertilizante, um dos maiores contribuintes de GEE de biocombustíveis, pode aumentar em cerca de 8% a IC dependendo da fonte de nitrogênio utilizada. Esse impacto pode ser ainda maior no uso da RenovaCalc, caso o produtor opte pelo perfil de produção padrão, cuja certificação é menos onerosa e considera o nível tecnológico médio nacional gerado a partir de banco de dados setoriais e dados da literatura, este aumento pode chegar a mais de 47% na IC. Ainda, a perspectiva do Ciclo de Vida configura-se como um desafio para os produtores no que diz respeito à rastreabilidade da produção, principalmente da soja e do milho, cuja origem pode ser de vários fornecedores, quando não, importados.

Conclusões

Conforme a discussão realizada acima ao, os principais impactos já refletidos neste início de safra 2020/2021 são a queda da demanda após medidas de “lockdown” para conter a pandemia, os preços baixos dos derivados da cana-de-açúcar, os cancelamentos de contrato pelos distribuidores, alterações no mix de produção, postergação do leilão de biodiesel, bem como limitações operacionais em usinas, portos e bases distribuidoras.

Para além das questões supracitadas, ainda se somam as incertezas quanto às projeções de consumo, recuperação dos mercados e investimentos futuros, atingindo diretamente as metas do RenovaBio. Instrumentos excepcionais como cláusulas de força maior, repactuações, reciclagem/redução de recursos, solicitações de isenção de impostos foram acionados. No entanto, é importante não perder os avanços institucionais já alcançados, dado que o programa vem demandando investimentos desde seu início. Faz-se, portanto, necessária uma reflexão sobre a modulação das metas sem gerar “prejuízos irreparáveis”, de modo a manter os níveis de desempenho ambiental. Além disso, mediante as restrições de circulação causada pela pandemia da COVID-19, gerando redução de emissões de GEE e novos hábitos da população, observou-se que o setor de combustíveis deve dar maior atenção às medidas de gestão de risco, preparando-se melhor para apoiar na transição energética necessária.

[1]http://www.mme.gov.br/documents/36224/459938/Nota+Explicativa+RENOVABIO+-+Documento+de+CONSOLIDACAO+-+site.pdf/dc4b6756-d7ca-ab6a-4aac-226c4b8bf436?version=1.0

[2]http://legislacao.anp.gov.br/?path=legislacao-anp/resol-anp/2019/junho&item=ranp-791-2019

[3]http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=09/07/2019&jornal=515&pagina=9&totalArquivos=67

[4]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13576.htm

[5]https://www.noticiasagricolas.com.br/videos/soja/255882-eua-fechara-30-plantas-esmagadoras-de-milho-para-etanol-com-crise-no-petroleo-e-coronavirus.html.

[6]https://www.cepea.esalq.usp.br/br/indicador/etanol-diario-paulinia.aspx

[7] https://br.investing.com/commodities/

[8]https://www.novacana.com/n/etanol/mercado/br-distribuidora-raizen-declaram-forca-maior-cancelar-contratos-etanol-300320.

[9]https://www.biodieselbr.com/noticias/regulacao/rbio/governo-cogita-reduzir-meta-do-renovabio-para-2020-em-pelo-menos-25-diz-fonte-030420.

[10]https://www.novacana.com/n/etanol/mercado/regulacao/mme-rever-metas-renovabio-distribuidoras-defendem-suspensao-programa-020420.

[11]SCACHETTI, M.T., Changes, CHAGAS, M.F., SEABRA, J.E.A., MATSUURA, M.I.S.F., RAMOS, N.P., MORANDI, M.A.B., MOREIRA, M.M.R., NOVAES, R.M.L., BONOMI, A. A RenovaCalc Aplicada ao Biocombustível Etanol de Cana-de-Açúcar. In VI Congresso Brasileiro sobre Gestão do Ciclo de Vida, Brasília, Junho, 2018. http://acv.ibict.br/wp-content/uploads/2018/08/Anais_GCV2018.pdf

[1] Professor do Programa de Engenharia de Produção (PEP/COPPE/UFRJ) e de Engenharia de Produção UFRJ-Macaé. Doutor em Planejamento Energético e Ambiental (PPE/COPPE/UFRJ).

[2] Professora do Departamento de Engenharia de Produção da Escola de Engenharia Industrial e Metalúrgica de Volta Redonda (EEIMVR/UFF). Doutora em Engenharia de Produção (PEP/COPPE/UFRJ).

[3] Mestre em Engenharia Urbana e Ambiental (PUC-Rio e Technische Universität Braunschweig).

[4] Doutoranda no Programa de Engenharia de Produção (PEP/COPPE/UFRJ). Mestre em Engenharia de Transportes (PET/COPPE/UFRJ).

[5] Doutoranda no Programa de Engenharia de Produção (PEP/COPPE/UFRJ). Mestre em Engenharia de Transportes (PET/COPPE/UFRJ).