Porque a MP da privatização da Eletrobrás não pode ser aprovada do jeito que está, por José Goldemberg.
José Goldemberg já foi presidente das empresas de energia do Estado de São Paulo: CESP (Companhia Energética de São Paulo), ELETROPAULO, COMGÁS e CPFL (Companhia Paulista de Força e Luz) e ex-membro do Conselho da ELETROBRAS. No governo federal, foi secretário da Ciência e Tecnologia, ministro da Educação, e secretário do Meio Ambiente. No estado de São Paulo, foi secretário do Meio Ambiente e presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Foi reitor da Universidade de São Paulo e é colaborador do Instituto Clima e Sociedade – iCS.
As votações na Câmara dos Deputados e no Senado Federal da Medida Provisória (MP) proposta pelo Governo para a privatização da Eletrobras se transformaram numa experiência “sui generis”. Trocou-se a obrigação governamental de planejar e regular, pela aprovação em lei de projetos sem comprovação de viabilidade cujos beneficiários não são os consumidores de energia elétrica, os quais, ademais terão de arcar com todos os custos decorrentes.
Aqueles que acompanharam os debates no Senado Federal na quinta feira 17 de junho, tiveram uma aula de “realpolityk” sobre como leis são “costuradas” e podem criar um verdadeiro “Frankenstein”.
A guisa de exemplo, lá pelas tantas o senador Ciro Nogueira, do Piauí, propôs ao relator, seu colega Marcos Rogério, de Rondônia, que emendasse o artigo da MP que obriga os consumidores de todo país a contratar, por leilões, 6 milhões de kilowatts de usinas térmicas (aumentados para 8 milhões) queimando gás natural em estados do Norte, Centro Oeste e Nordeste,
O artigo já era um dos “jabutis” inseridos na MP quando de sua passagem pela Câmara dos Deputados, e é irracional porque é exigido que as usinas sejam construídas onde não existem gasodutos para levar gás, nem consumidores para toda eletricidade que viesse a ser gerada nessas térmicas. Pois bem, o senador Ciro Nogueira propôs verbalmente – após um discurso nacionalista – que o gás a ser usado nas térmicas a serem instaladas na Região Amazônica, fosse nacional. A proposta, no mínimo, teria que basear-se num estudo que demonstra a disponibilidade de gás na região, nos volumes horários exigidos. Não há. A emenda do senador Ciro Nogueira é um cheque em branco para as empresas fósseis que já possuem ou ganharem áreas de exploração de petróleo e gás na Amazônia Legal. Só depois de “sacado o cheque” é que os consumidores conhecerão o tamanho da conta.
Dado que boa parte dos consumidores já sofre para pagar as contas mensais de eletricidade, e dada uma leve esperança de que o país ainda não perdeu completamente o juízo, todos esses “jabutis”, inclusive a proposta do senador Ciro Nogueira, não deverão prosperar. Mas o fato dessas insanidades terem sido aprovadas mostra que Bismarck, chanceler do Império alemão do século 19, tinha razão ao comparar a aprovação das leis no parlamento (alemão) com a preparação de salsichas. Por aqui nos esmeramos em aperfeiçoar essa prática.
A grande barganha promovida pelo governo, na aprovação da privatização da Eletrobras, foi trocá-la pelo planejamento, uma atribuição sua que é intransferível e essencial em uma atividade vital como a oferta de energia elétrica.
O Brasil tem uma longa experiência na produção de eletricidade, forjada no planejamento e construção de usinas hidrelétricas, que já no fim do século XIX começaram a ser construídas por aqui, sendo uma das primeiras em Minas Gerais. A Eletrobras foi criada em 1962 para planejar e instalar uma rede nacional integrada de produção e transmissão de eletricidade. O que fez com sucesso.
Os planos para hidrelétricas sempre foram de longo prazo, passando por mais de um governo de plantão. São intensivos em capital e suas obras levam entre 5 a 10 anos para serem completadas, dependendo do porte.
O Brasil tem bons engenheiros e técnicos para fazer melhor que o aprovado pelo Congresso Nacional. Nos últimos 60 anos, engenheiros como Lucas Nogueira Garcez e outros formularam planos que moldaram o atual sistema elétrico nacional. Graças a eles, o país conta com uma boa base hidroelétrica e uma rede integrada de conexão. Hoje, as novas tecnologias que apresentam custos decrescentes, como a eólica e solar fotovoltaica, se ajustam perfeitamente para a expansão da oferta, de modo a atender a demanda de um país que ainda precisa crescer em renda e consumo.
Os problemas atuais do sistema elétrico nas suas áreas de fronteira, especialmente na região amazônica, não serão resolvidos com improvisações, como parecem acreditar o governo e os parlamentares que propuseram as emendas “jabutis”. Aos parlamentares cabe exigir prioridade e tempestividade das soluções. O que fizeram foi tentar substituir o papel dos órgãos técnicos que, repita-se, têm a obrigação legal e constitucional de planejar e resolver os problemas do setor.
A Eletrobras não tem hoje recursos para novos investimentos e uma pulverização do seu controle acionário, para fora do governo federal, pode ser benéfica para o setor e seus consumidores. A empresa gera mais de 30% da eletricidade usada no país e detém mais de 40% das linhas de transmissão. Caberá ao governo, à ANEEL, à CVM e outros, supervisionar para que não ocorram práticas monopolísticas em prejuízo da sociedade e dos consumidores.
O bom senso indica que a Eletrobras pode ser privatizada como ocorreu com a Companhia Energética de São Paulo – CESP, a qual instalou a grande maioria dos empreendimentos no Rio Tietê e outros rios do Estado de São Paulo.
O que não pode ser privatizado é o planejamento energético. O Governo Federal tem os instrumentos para fazê-lo: ANEEL (Agencia Nacional de Energia Elétrica), EPE (Empresa de Pesquisa Energética), o ONS (Operador Nacional do Sistema), além de outras agências como a ANA (Agencia Nacional de Águas) e o IBAMA.
O que ocorreu, contudo, na aprovação da Medida Provisória que autoriza a privatização da Eletrobras foi a introdução de verdadeiros absurdos que ignoram completamente os planos para a produção de eletricidade das agencias responsáveis.
Quem foi derrotado na votação não foi a oposição (42 contra 37, no Senado), mas as agencias reguladoras e de planejamento do Governo Federal.
É fundamental que o Presidente da República, ao sancionar a Lei aprovada pelo Congresso Nacional, retire do texto os “jabutis” que beneficiam de maneira caótica grupos regionais, preservando o interesse nacional que só um planejamento adequado poderá garantir.
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ClimaInfo, 20 de junho de 2021.
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