Mulheres quilombolas na luta por justiça social e climática

Selma Dealdina (esq.), Gessiane Nazario (centro); e Valéria Porto (dir.), durante lançamento do livro sobre Mulheres Quilombolas.

Por Tatiane Matheus*

A história dos quilombolas perpassa os principais problemas ambientais existentes no Brasil.  Entretanto, ainda pesa sobre eles toda a invisibilidade da história do papel central das mulheres negras na constituição e na manutenção da vida cultural e política dos seis mil quilombos existentes no país. Apesar de serem cruciais na preservação ambiental, apenas 3.386 são certificados pela Fundação Cultural Palmares (FCP), e 181 são territórios titulados. No Instituto Nacional de Colonização para a Reforma Agrária (Incra), 1.691 processos aguardam por regularização. 

A morosidade é tamanha que, considerando o ritmo atual dos processos, seriam necessários 600 anos para titular todos os quilombos no Brasil, segundo a Terra por Direitos e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Em 2021, durante a COP26, na Escócia, o movimento negro participou da Conferência do Clima e defendeu, entre outros direitos, o da titulação de terras quilombolas como estratégia para desmatamento zero. Neste ano, na COP27, realizada de 6 a 20 de novembro, no Egito, houve um aumento significativo da presença da comunidade negra, que dialogou e fomentou compromissos entre a sociedade civil.  

“A pauta ambiental do Brasil é criada e pensada por pessoas brancas. Ou colocamos raça no debate ou não vai funcionar. A COP precisa ser pensada pelas pessoas que estão na base”,  explicou a secretária-executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Selma dos Santos Dealdina, na roda de conversa para o lançamento do livro intitulado “Mulheres Quilombolas, territórios de resistências negras femininas”, organizado por ela e publicado pelo selo Sueli Carneiro, da editora Jandaíra.

Selma destacou que é necessário “humanizar”, “enegrecer” e “indigenizar” a conferência das Nações Unidas pelo Clima. “É preciso trazer as mulheres, a juventude e o LGBTIQI+ na COP. Se não, vamos pela metade. Sem colocar diametralmente as caixinhas dentro, ela não funciona. Acho que, de agora para a frente, não vamos retroceder”, complementou Selma que é enfática ao dizer: “precisamos ocupar os espaços de negociação.”

Mulheres quilombolas

Um povo que não conhece sua história está fadado a repeti-la”, já dizia o filósofo e político irlandês Edmund Burke, ainda no século XVIII. Atos antidemocráticos recentes são um dos muitos exemplos das consequências do desconhecimento da história – ou até do conhecimento de uma história deturpada. Por isso, o livro sobre mulheres quilombolas é primordial para este momento do país, e a leitura, obrigatória para quem luta por justiça climática. Com diferentes linguagens — depoimentos, estudos e até poesias —, a publicação foi escrita por 18 mulheres quilombolas de distintas comunidades.

Além de Selma, a roda de conversa, realizada no Espaço Femininos Plurais, em São Paulo, na semana passada, contou com a presença da engenheira agrônoma Valéria Porto e da doutora em Educação Gessiane Nazario, também autoras. A publicação é primordial para o combate ao racismo ambiental e para a luta pela justiça climática. Os capítulos abordam, sob o ponto de vista de quilombolas de territórios de várias regiões do país, os desafios presentes e as soluções propostas, em um processo que remonta a história a partir do olhar quilombola. Trazem a diversidade que faz com que comunidades tenham traços únicos, mas com características em comum que envolvem,  além do trabalho em coletividade, o respeito à ancestralidade e a luta constante pela sobrevivência e pelo respeito à sua cultura.

Os territórios quilombolas resistem a um quadro de total abandono em termos de políticas públicas, pela falta de saneamento básico, de direito à moradia adequada, de políticas de Saúde e Educação. A legislação existente é favorável ao reconhecimento às terras. O direito à propriedade dos territórios está na Constituição e no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Na prática, porém, existem diversos conflitos e disputas envolvendo especulação imobiliária, instalação de grilhões de energia, portos, ferrovias (entre outros projetos) e grilagem de terra em territórios quilombolas. Outros desafios são a morosidade e a burocracia para o reconhecimento de terras. Sem contar os crimes ambientais que muitas comunidades sofreram, como, por exemplo, o ocorrido na região de Brumadinho (MG), com o rompimento da barragem da empresa Vale, em 2019, afetando também os quilombolas. 

Falar do direito ao território pelo olhar de mulheres quilombolas e de sua diversidade em todo o país é também denunciar as perdas recorrentes do plantio de alimentos pelas mudanças climáticas — que reduzem e até trazem o risco do desaparecimento das sementes crioulas. Trata-se, ainda, da compreensão sobre como práticas milenares preservam a biodiversidade, incluindo práticas agroecológicas. Dessa forma, as mulheres quilombolas representam uma importante parcela da população que deve fazer parte do debate ambiental para soluções à emergência climática.

“Mesmo que exista a ilusão de que vivemos em um país livre da escravidão, da colonização e do racismo, devido a mitos consolidados no imaginário social, como o da democracia racial, o projeto de nação brasileira tem raízes profundas na dominação de um povo. (…) Tal realidade é facilmente identificada nos dados da desigualdade abissal entre negros e índios (sic) e os não negros e não índios no Brasil. Nesse cenário, as mulheres encontram-se em uma posição ainda mais vulnerável comparativamente, acumulando ainda os  danos de uma sociedade racista e patriarcal”, como registra um dos capítulos assinado pela membro-fundadora da Conaq Givânia Maria da Silva. Já passou do tempo de fazer com que a perspectiva de gênero e de identidade racial existentes sejam consideradas, pois é somente pelo conhecimento e pela inclusão de diferentes perspectivas que, de fato, torna-se possível ordenar prioridades e estratégias para a luta por justiça social e climática.

(*) Tatiane Matheus é jornalista e pesquisadora em Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão no Instituto ClimaInfo

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