Marco temporal: mais uma violação de direitos dos povos originários

Crédito: Brenno Carvalho/Agência O Globo

O julgamento desta tese jurídica terá início nesta quarta-feira (7/6) no Supremo Tribunal Federal e vai deliberar sobre o direito dos povos indígenas à terra ocupada por eles desde antes da invasão portuguesa.

Imagina que você vivia em uma casa desde que nasceu, no meio da floresta. Eram meados dos anos 1940. Pelas distâncias, no meio da mata, você não sabia que há séculos já estavam ocupando regiões próximas à sua, e violando direitos dos seus parentes. Aquele lugar, que já tinha sido do seu pai, do seu avô, era ocupado pela família por gerações, com ancestrais enterrados próximo ao seu quintal. Aquele era seu mundo; dali você tirava o seu sustento. 

Um dia, pessoas estranhas e ameaçadoras chegaram, com máquinas e equipamentos, dizendo que aquelas terras eram delas. Você sequer sabia o que significava ser dono de uma terra! Você só se permitia o direito de ser e estar naquele local.

Também não sabia que o governo, à época, tinha uma nova estratégia de ‘invasão’ (chamada de ocupação) do seu território, em uma política que ficou conhecida como “Marcha para o Oeste”.

Diante do medo e das ameaças reais, você se viu obrigado a deixar seu território e a vida como conhecia para trás, e sabia que não poderia voltar, pois corria risco de morte. 

Embora tenha procurado meios para lutar, você sequer poderia procurar por Justiça, porque sua família e seu povo passaram a ser tutelados pelo Estado brasileiro na Ditadura Militar.

Eis que, enquanto ainda estava fora, fazendo bicos e lutando para sobreviver numa cidade onde não havia caça nem pesca em abundância, houve a promulgação, em 1988, da Constituição Federal, que passou a reconhecer o seu direito originário, ou seja, anterior a formação do próprio estado brasileiro, ao território ancestral , do qual você teve que forçosamente sair. Ali você viu uma chance real de poder retornar ao local com o qual nutria conexão física, mental e espiritual.

Alguns dizem hoje que você, por estar fora da sua casa em determinado dia e ano, mesmo que por motivos forçados, teria perdido o direito a ela e a sua terra. Outros, ao contrário, defendem que esse direito é assegurado historicamente a você, por toda conexão que você e sua ancestralidade têm com aquele lugar.

É disso que se trata o julgamento do chamado marco temporal, que deverá reiniciar no Superior Tribunal Federal, a partir desta quarta-feira (7/6), por meio do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365. “O que está em jogo é o reconhecimento ou a negação do direito mais fundamental aos povos indígenas: o direito à terra”, como destaca a Conectas.

Segundo a ONG, que atua em parceria com outras organizações em defesa dos direitos indígenas, existem duas teses principais em disputa para serem decididas no STF. De um lado, a ‘teoria do Indigenato”, que é datada do período colonial e reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito “originário”, ou seja, anterior ao próprio Estado.

“Do outro lado, há uma proposta restritiva, que pretende limitar os direitos dos povos indígenas às suas terras ao reinterpretar a Constituição com base na tese do chamado ‘marco temporal’”, explica o texto publicado pela ONG.

A Conectas explica que o marco temporal é uma tese jurídica defendida por ruralistas e setores interessados na exploração de terras tradicionais. Por essa visão, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras se estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, quando a Constituição Federal foi promulgada, ou se tivessem uma disputa judicial ou um conflito material comprovado naquela mesma data. Não é à toa que os movimentos indígenas gritam aos quatro cantos, em mobilizações nacionais e internacionais, que “a história deles não começa em 1988!”.

Se essa tese for aprovada, abre precedentes para que indígenas sejam expulsos de suas terras, caso elas tenham sido retomadas por eles após a Constituição Federal. Por sua vez, se os ministros do STF entenderem que o marco temporal não se sustenta juridicamente, um processo de reparação histórica frente a um passado de desmandos, violências e usurpações dos direitos e das terras indígenas será consolidado pelo órgão máximo da Justiça brasileira

Segundo a Conectas, seria um caminho para solucionar centenas de conflitos existentes hoje no país. “As 310 Terras Indígenas que estão estagnadas em alguma etapa do processo de demarcação já não teriam, em tese, nenhum impedimento para que seus processos administrativos fossem concluídos”.

O Caso Xokleng

O julgamento do STF envolve um caso específico, referente a um pedido de reintegração de posse, por parte do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA), contra indígenas do povo Xokleng e a FUNAI. O caso envolve uma área reivindicada da Terra Indígena Ibirama-Laklanõ, que foi sendo reduzida nos anos 1900. Estudos da FUNAI e o próprio Ministério da Justiça atribuem o território como sendo parte da terra tradicionalmente ocupada pelos Xokleng.

Embora o julgamento refira-se a este caso específico, a decisão do STF, ratificando ou colocando uma pá de cal jurídica na tese do marco temporal, é de repercussão geral, ou seja, a decisão tomada nesse julgamento terá consequências para todas as terras e povos indígenas no Brasil. 

O julgamento está suspenso há dois anos no STF, devido a pedido de vistas feito pelo ministro Alexandre de Moraes quando a votação estava empatada em 1×1, com o voto do ministro relator Luiz Edson Fachin contrário ao marco temporal e favorável aos direitos dos povos originários, e o voto do ministro Nunes Marques a favor da tese anti-indígena.

Mobilização em Brasília

Desde segunda-feira (5/6), quando se comemorou o Dia Mundial do Meio Ambiente, lideranças e movimentos em direito dos povos indígenas estão em Brasília, para acompanhar de perto o julgamento do STF. Mais de dois mil indígenas são esperados no acampamento em vigília à votação.

“O marco temporal para nós é um retrocesso e uma negação dos nossos Direitos. Todos os parentes, territórios, aldeias e cidades devem permanecer mobilizados nesse momento tão decisivo para os Povos Indígenas”, convocou Val Eloy, coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) pelo Conselho Terena. 

O relator do caso, ministro Edson Fachin, adotou uma figura jurídica do amicus curiae (“amigos da corte”), por meio da qual é possível que entidades e órgãos com interesse e conhecimento sobre o tema subsidiem o STF com informações. De acordo com a Conectas, mais de 50 pessoas e/ou organizações foram admitidas, dentre as quais estão representantes de comunidades e organizações indígenas.

Levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), encaminhado ao STF, aponta a existência, hoje, de “724 Terras Indígenas com processo administrativo de demarcação aberto ou encerrado. Elas se encontram em diferentes etapas de reconhecimento oficial pelo Estado brasileiro”. 

Esse estudo do MapBiomas mostra que as Terras Indígenas ocupam 13,9% do território brasileiro, totalizando 115,3 milhões de hectares. Em 2021, elas representavam 20,4% da vegetação nativa do país. Quando o assunto é desmatamento, apenas 0,9% (ou 0,6 milhão de hectares) de toda a perda de vegetação nativa ocorreu em Terras Indígenas nos últimos 30 anos. Já nas áreas privadas, a perda de vegetação somou 44,8 milhões de hectares de vegetação nativa no período, ou seja, 69,3% dos 65 milhões de hectares desmatados entre 1991 e 2021. “De todas as categorias fundiárias, as TIs estão entre as áreas mais protegidas”. A conservação ambiental, por si só, já é um argumento que derruba a falsa tese de que existe muita terra para pouco indío. 

Além disso, a maior parte das Terras Indígenas – 98% das áreas – estão na Amazônia Legal, “em regiões de pouca pressão econômica e com menor ocupação por não indígenas”, segundo o ISA. Fora da Amazônia, onde concentra-se a maior parte do PIB agropecuário, as TIs ocupam algo em torno de 0,6% do território, conforme a Conectas. Por outro lado, estabelecimentos rurais privados ocupam 41% do território nacional, segundo dados do IBGE. Os processos de demarcação de TIs ocorreram principalmente depois da Constituição de 1988.O g1 também traz mais informações sobre o marco temporal.

Por: Daniela Vianna

ClimaInfo, 7 de junho de 2023.

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