Carro em breve será coisa do passado?

A ideia de que abandonaremos nossos tão prezados carros pode parecer exagerada. Mas, à medida que as cidades reduzem o uso do carro, a tecnologia parece colocar esta visão no horizonte.

(d’après John Harris*)

 

Depois de um século com carro o coração da civilização industrial, a era do automóvel, da propriedade em massa destes veículos e da predominância da ideia de que a vida de cada um não é completa sem seu próprio conjunto de rodas, parece estar perto do fim. Ninguém mais escreve canções sobre ferraris, cadillacs e calhambeques (quer dizer, tem alguns autores sertanejos e do funk ostentação que ainda insistem no tema). Os rachas nas ruas são vistos como das coisas mais lamentáveis. Nas cidades do mundo desenvolvido, o uso do carro tem sido superado por várias alternativas mais “verdes” e mais libertadoras. Nas cidades brasileiras, os congestionamentos atormentam, o carro não é mais símbolo de mobilidade, e os jovens já não os têm como objeto de desejo, superado pelos smartphones que a todos conectam.

 

O mundo desenvolvido pouco a pouco toma providências para se livrar do carro: a venda de carros a diesel e gasolina será proibida no Reino Unido a partir de 2040; há pouco, a cidade de Oxford anunciou que está se preparando para ser a primeira cidade britânica a banir todos os carros e vans a diesel e gasolina das suas ruas centrais já em 2020, o que será estendido a toda a área urbana 1o anos depois; até 2030, Paris vai banir todos os carros movidos a diesel e gasolina, passando a permitir somente os carros elétricos; a cidade já tem o hábito de anunciar dias livres de carros nos quais os motoristas devem ficar fora do seu centro histórico; na cidade francesa de Lion, o número de carros caiu 20% desde 2005, e as autoridades locais esperam uma outra queda da mesma magnitude; Londres parece ter superado a ideia de que o aumento da prosperidade leva necessariamente ao aumento do uso de automóveis, tendo visto uma queda de 25% na fração das viagens urbanas feitas por automóveis desde 1990.

 

No início deste ano, os analistas do Bank of America concluíram que os EUA podem já ter atingido seu pico de uso do automóvel, reconhecendo que esta forma de “transporte é cara e ineficiente, o que torna o setor maduro para a interrupção”. O foco dos analistas é o uso de serviços de compartilhamento de automóveis, aplicativos de uso coletivo e de uso coletivo de bicicletas. O que os analistas do banco previram tem uma sensação de realidade que já é evidente.

 

Há problemas nesta visão, é claro. Embora as cidades das economias emergentes da China e da Índia gostem tanto do compartilhamento de carros e do uso compartilhado de bicicletas como qualquer outro lugar, a propriedade de carros nestes países está aumentando vertiginosamente. E, como habitantes das cidades brasileiras, todos somos testemunhas de como o transporte público é lamentável. Mesmo que esta percepção nos traga regulares doses de culpa, atualmente poucos podemos abrir mão – pelo menos do desejo – de possuir um carro e usá-lo todos os dias.

 

Mas os crescentes indícios dos níveis fatais de poluição do ar das grandes cidades globais confirmam os terríveis impactos ambientais da indústria automobilística; e, em algumas partes do mundo, as preocupações com os empréstimos ‘subprime’ que têm movimentado uma grande faixa do mercado de carros sugerem que as supostas alegrias da direção podem ser insustentáveis de muitas outras maneiras.

 

As dores de parto das novidades são inevitáveis, como evidenciado pelo mau cheiro que envolve Uber, um exemplo arquetípico das tecnologias atuais que apontam para o futuro, mas que muitas vezes obscurecem suas visões criando uma grande nuvem de arrogância em seu entorno. Mas, independentemente das falhas do Uber, a inovação que a tecnologia traz dificilmente será colocada de volta em alguma gaveta. Nos EUA, o custo médio por milha do Uber-X é de US$ 1,50; enquanto, na cidade de Nova York, o custo de uso de um carro individual chega a US$ 3 por milha. Com a chegada dos veículos autônomos, não haverá mais como justificar financeiramente a opção pelo carro individual.

 

Embora taxistas e demais motoristas profissionais possam sofrer um tanto, esta é uma boa notícia. Traz perspectivas emancipatórias na medida em que a mobilidade não mais dependerá de um enorme gasto com a compra de uma caixa metálica sobre rodas, nem da extorsão organizada da indústria de seguros; todos, independentemente da idade ou capacidade, poderão acessar o mesmo transporte. A depender da vontade dos prefeitos, a diminuição do número de carros trará oportunidades para o redesenho radical das áreas urbanas, com benefícios ambientais evidentes. E à medida que as cidades se tornem cada vez mais livres de carros, gritarão por suas próprias mudanças. E o transporte público, talvez possa assumir uma nova vitalidade.

 

Seria esta visão utópica? Talvez, mas não mais do que aquelas que previam um carro estacionado ao lado de cada casa, o que acabou se mostrando uma quase verdade. Henry Ford disse uma vez que “os restos do velho devem ser guardados decentemente; e o caminho do novo preparado”. É irônico que esta mesma frase agora se aplique aos sonhos de quatro rodas que ele criou e à sua jornada final com destino ao ferro-velho.

 

* Este texto é uma adaptação do originalmente publicado no jornal inglês The Guardian (Owning a car will soon be a thing of the past), o qual está disponível em https://www.theguardian.com/commentisfree/2017/oct/23/owning-car-thing-of-the-past-cities-utopian-vision?CMP=fb_gu