Relatório 1,5°C do IPCC subestima a ameaça, dizem pesquisadores

Apesar da contundência do relatório especial 1,5oC do IPCC, alguns cientistas criticam o texto de seu Sumário para Formuladores de Políticas ser demasiadamente cuidadoso e não suficientemente forte.

 

O Relatório 1,5oC das Nações Unidas divulgado no começo de outubro de 2018 fez algumas revelações impressionantes, como a de que a década de 2020 pode ser uma das últimas chances da humanidade evitar impactos devastadores.

 

Mesmo assim,  tem gente que diz que seus autores foram demasiado cuidadosos.

 

O Relatório 1,5oC do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) diz com todas as letras que evitar uma crise climática exigirá uma reinvenção completa da economia global. Até 2040, prevê o Relatório, pode haver uma escassez global de alimentos, a inundação de cidades costeiras e uma crise de refugiados como o mundo nunca viu.

 

Vários cientistas afirmam que o relatório não foi suficientemente forte e que subestimou a extensão real das ameaças. Eles dizem que ele não leva em conta todo o aquecimento que já ocorreu e que minimiza os custos econômicos de tempestades severas e da migração de populações em fuga de secas e ondas de calor letais.

 

O mundo tem um orçamento de carbono (a quantidade de combustíveis fósseis que ainda podem ser usados antes de atingir um ponto de virada) menor do que o relatório afirma, disse Michael Mann, professor de ciência atmosférica e diretor do Centro de Ciência do Sistema da Terra da Universidade Pensilvânia State, da Filadélfia. Nos últimos anos, Mann publicou dois artigos com outros pesquisadores para mostrar que a linha de base “pré-industrial” usada pelo relatório não deveria ser baseada em dados do final do século XIX: “A Revolução Industrial já estava em andamento, e os humanos já haviam aquecido o mundo em vários décimos de grau”.

 

“Estamos mais perto dos limiares de 1,5oC e 2,0oC do que eles (os autores do relatório) indicam e o orçamento de carbono para evitar esses limiares críticos é consideravelmente menor do que eles calculam”, escreveu Mann em um e-mail para a E&E News. “Em outras palavras, eles pintam um cenário excessivamente otimista, ignorando literatura relevante.”

 

Em outros pontos, o relatório 1,5oC não dá destaque para alguns dos principais riscos da mudança climática, disse Bob Ward, diretor de políticas e comunicações do Instituto Grantham de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas e Meio Ambiente da London School of Economics, do Reino Unido. No Sumário para Formuladores de Políticas, a seção que recebe mais atenção não menciona deslocamentos de populações ou conflitos, segundo Ward. Também não descreve nenhum outro risco exceto o da desestabilização das camadas de gelo da Groenlândia e da Antártida Ocidental.

 

“O perigo de omitir estes grandes riscos é a subestimação, pelos formuladores de políticas, da escala e da urgência da situação”, escreveu Ward em um e-mail. “Os autores podem tê-los deixado de fora porque são incertos. No entanto, os formuladores de políticas podem interpretar erroneamente essa omissão como um sinal de que os autores examinaram os riscos e decidiram que os impactos não seriam importantes ou que suas probabilidades eram nulas. É a diferença entre uma revisão acadêmica da literatura e uma avaliação profissional de risco”.

 

O relatório 1,5oC do IPCC minimiza os custos reais da mudança climática e dos desastres naturais decorrentes, porque é difícil separar o papel exato da mudança do clima causada pelo homem sobre um furacão ou outro desastre, disse Kevin Trenberth, cientista sênior da Seção de Análise Climática do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica em Boulder, Colorado.

 

Trenberth disse que o IPCC poderia fazer declarações mais fortes sobre a atribuição de eventos extremos às mudanças climáticas causadas pelo homem. O relatório também poderia ter sido mais contundente ao conectar os custos de tempestades extremas com a mudança climática causada pelo homem.

 

Outro desafio é que o relatório se baseia em muitos estudos ou relatórios sobre um único país, como o Irã ou a Romênia, sem olhar para tendências regionais maiores, disse Trenberth. “O IPCC tende a ser bastante conservador no modo de fazer as coisas porque trata-se do mínimo múltiplo comum entre um grande número de pessoas de muitos países diferentes, que têm um histórico mais limitado em lidar com o material em avaliação”.

 

O relatório também ignora fatores imprevisíveis (wild cards) do sistema climático, ou feedbacks autorreforçados, disse Veerabhadran Ramanathan, professor de ciências climáticas da Universidade da Califórnia em San Diego. Isso inclui o adelgaçamento do gelo do Ártico, que permite que o oceano absorva mais calor, causando ainda mais perda de gelo e menor refletividade na região. Esses circuitos de feedback têm uma possibilidade real de levar o planeta para um período de caos que os humanos não podem controlar.

 

Ramanathan disse que o relatório toma pesquisas sólidas, como a sua descoberta de que um aquecimento de 1,5oC pode acontecer entre 2030 e 2035, e reduz sua importância por ser excessivamente cauteloso. “Estou um pouco preocupado que os formuladores de políticas que são céticos sobre tudo isso venham a dizer: ‘Eles estão falando de meio grau de diferença; não vou me preocupar com isso'”.

 

Mais cientistas criticaram o relatório. Alguns disseram que está subestimado, enquanto outros o descrevem como excessivamente alarmante. Uma área que merece mais atenção é a que se refere a cenários de risco mais alto, nos quais a incerteza é maior, mas que levam a implicações mais devastadoras, disse Andrea Dutton, especialista em aumento do nível do mar da Universidade da Flórida, em Gainesville.

 

“A mensagem a guardar é a seguinte: os cientistas que vem estudando as mudanças climáticas e que escrevem esses relatórios são frequentemente as mesmas pessoas que têm a maior preocupação com os possíveis impactos”, disse Andrea. “Se os mais bem informados sobre a situação também são os mais preocupados, então é hora do público em geral não apenas começar a prestar mais atenção, mas converter essa preocupação e desespero em ação”.

 

O Relatório é apresentado de maneira apropriada e equilibrada, avaliando riscos e destacando as incertezas quando apropriado, disse Gavin Schmidt, cientista climático e diretor do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da NASA. É também algo passível de verificação ao longo da vida de muitos dos cientistas que deram sua contribuição, disse. Isso mostra o grau de confiança que eles têm em suas previsões, ele disse.

 

“Os cientistas do clima estão realmente explicitando suas previsões por escrito. Isso não é algo que acontecerá nos próximos séculos; é isso que estamos prevendo que acontecerá em décadas”, disse Schmidt. “Eu acho que é uma declaração sobre a nossa confiança em qual será a trajetória que muitos desses aspectos tomarão e um alerta para as pessoas que terão que lidar com eles.”

 

Artigo originalmente publicado pela E&E News e republicado pela Science.

https://www.eenews.net/climatewire/2018/10/11/stories/1060102283

https://www.sciencemag.org/news/2018/10/new-climate-report-actually-understates-threat-some-researchers-argue