Os efeitos perversos das discriminações sociais são naturalizados para permitir a destruição ambiental

Por Tatiane Matheus*

Atualmente, no Brasil, há 620 conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil, de acordo com o Mapa que compila e analisa esses dados desde 2010. O agronegócio, a mineração, as madeireiras, o garimpo, a especulação imobiliária e o próprio Estado são geradores de conflitos ambientais. Apesar de o racismo ambiental não configurar como categoria de classificação nesse mapeamento, grande parte dos conflitos ambientais no Brasil envolve, de alguma forma, processos relacionados a ele.

“Naturaliza-se os efeitos perversos das discriminações sociais para permitir a destruição ambiental, o que geralmente amplia ainda mais as desigualdades sociais, econômicas, raciais e étnicas”, diz o pesquisador do Mapa de Conflitos e Núcleo de Estudos em Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde (Neepes), o sociólogo e doutor em Saúde Pública e em Democracia no século XXI, Diogo Rocha, entrevistado da série Racismo Ambiental do Brasil, do ClimaInfo.

ClimaInfo: ​​Como definir o racismo ambiental brasileiro? Ele é uma consequência do racismo estrutural? Qual é a importância de nomeá-lo?

Diogo Rocha: O racismo ambiental brasileiro pode ser definido como a articulação entre o racismo estrutural e as injustiças ambientais. Não é exclusividade daqueles submetidos a uma condição de subalternidade racializada, mas entre outras formas de discriminação, sejam elas étnicas, de gênero, de origem, etc. –  acabam confluindo para legitimar escolhas que se baseiam na perspectiva de que os locais e territórios onde essas pessoas vivem sejam considerados de menor importância, do ponto de vista da preservação ambiental, ou “sacrificáveis”, em nome do “progresso”.  

É importante nomear o racismo ambiental, porque informa que as escolhas políticas, econômicas e locacionais que geraram importantes impactos ambientais e sobre a saúde humana não ocorrem apenas a partir de um cálculo estrito de custo-benefício ambiental, mas também é orientado por uma perversa lógica política que busca se aproveitar da menor capacidade de agenciamento político ou de se fazer ouvir a que certas populações estão submetidas por nossa estrutura social racista e discriminatória. 

Há um menor “custo político” para os agentes estatais e corporativos se determinados empreendimentos são instalados em locais onde as populações afetadas podem ser silenciadas por pressões políticas (muitas vezes de forma violenta); são mais vulneráveis à cooptação por supostas benesses econômicas; ou ainda encontram-se ativamente deslegitimadas. Isso porque ainda persistem, no imaginário social, ideias errôneas, porém bastante difundidas. Uma delas é a de que os povos indígenas sejam menos propensos ao trabalho; outra é a de que populações negras seriam menos capacitadas para atividades que requerem mais anos de estudos, mas existem outras. Naturaliza-se os efeitos perversos das discriminações sociais para permitir a destruição ambiental, que geralmente amplia ainda mais as desigualdades sociais, econômicas, raciais e étnicas.

ClimaInfo: Atualmente, quantos conflitos por território existem, de acordo com o último mapeamento?

Diogo: Temos mapeados cerca de 620 conflitos: sejam pela natureza, sejam pelas características. Um território pode ser simultaneamente impactado por vários empreendimentos, o torna complexo estabelecer que os 620 conflitos correspondam a 620 territórios distintos. Privilegiamos a análise dos processos históricos, sociais e políticos que determinam o que ocorre em cada caso. Periodicamente, geramos dados quantitativos sobre os casos, pois essas informações nos ajudam a dimensionar quais são as atividades que mais geram conflitos ambientais, atualmente, e quais são as consequências mais frequentes sobre o meio ambiente e a saúde coletiva. 

ClimaInfo: Ao longo dos anos do estudo mapa dos conflitos, quais as mudanças observadas?

Diogo: O Mapa de Conflito foi ao ar em 2010. Alguns setores da economia, como o agronegócio, a mineração, as madeireiras, o garimpo e a especulação imobiliária permanecem como importantes geradores de conflitos ambientais. O Estado, que antes era um agente ativo nos estímulos econômicos à instalação de empreendimentos potencialmente poluidores ou danosos ao meio ambiente, paradoxalmente, com o  fortalecimento de diversas políticas públicas, reconheceu os direitos de cidadania dos grupos sociais mais vulnerabilizados por esses mesmos empreendimentos. Seja a partir do impulsionamento de políticas de atenção básica à saúde, seja pelo fortalecimento de programas no campo da assistência social. 

As obras dos PACs muitas vezes provocavam inúmeras injustiças sociais e ambientais, porque todos os programas sociais baseavam-se em políticas de arrecadação que tentavam redistribuir renda com base no chamado boom das commodities. Com a queda dos preços das commodities, após a crise de 2008, e com o refreamento do crescimento chinês, na década seguinte, ficou claro que essa era uma via duplamente insustentável, dos pontos de vista econômico e ambiental. O polêmico impedimento da ex-presidenta Dilma Rousseff foi um sinal de alerta de que aqueles que mais tinham se beneficiado do crescimento brasileiro naquele período não estavam dispostos a continuar apoiando políticas sociais em um momento de baixo crescimento. 

Nos últimos quatro anos, com o governo Jair Bolsonaro, os agentes econômicos por trás dos conflitos ambientais permaneceram os mesmos, mas, neste período, eles alcançaram uma maior liberdade de ação. Um exemplo claro da mudança do papel do Estado, entre 2019 e 2022, foi a crescente fragilização de instituições estatais que, nos anos anteriores, tinham sido fortalecidas e exerciam um papel estratégico na limitação da capacidade de ação dos grandes grupos econômicos. 

Esse redirecionamento político da União, para o atendimento de demandas por maior liberdade de ação dos grupos econômicos, acabou por aprofundar os conflitos que já existiam durante governos que antecederam Bolsonaro. Na atual gestão, porém, assumiram uma maior dramaticidade e violência devido à inação estatal. Não há mais paradoxo entre políticas econômicas e socioambientais, uma vez que, agora, as políticas econômicas adquiriram primazia sobre as demais. Incentivou-se uma crescente hostilidade contra os movimentos sociais, caracterizados como inimigos do Estado e da ordem pública, de forma que muitos dos debates que haviam tomado parte do espaço público nos governos anteriores passaram a ser rechaçados ou silenciados. Muitos espaços de participação social foram extintos, e importantes ministérios responsáveis pelas políticas sociais foram incorporados por outros, com um direcionamento mais conservador.

ClimaInfo: Pelo mapa dos conflitos também podemos ter um mapeamento de lugares onde ocorre racismo ambiental no Brasil? 

Diogo: Grande parte dos conflitos ambientais no Brasil envolve, de alguma forma, processos de racismo ambiental, justamente devido ao fato de que os territórios das minorias políticas são os mais ameaçados e também pelo fato de que, no Brasil, essa menor capacidade de agenciamento político está, histórica e estruturalmente, imbricado com as desigualdades étnicas e raciais. Dito isso, é preciso esclarecer que o racismo ambiental não configura como uma categoria de classificação no Mapa, portanto, não entra nos filtros. Justamente por haver essa correlação tão próxima entre os dois fenômenos, o número de casos que ficaria de fora da classificação ‘racismo ambiental’ seria muito pequeno. 

ClimaInfo: Na sua visão, o que deve ser feito nas diferentes esferas da sociedade para um combate real ao racismo ambiental?

Diogo: Se temos um problema que está enraizado na própria lógica de estruturação econômica e social, somente com alternativas sistêmicas ele poderá ser enfrentado. Isso significa atuar em várias frentes simultaneamente. Localmente é importante que se fortaleçam as lutas por resistência a esses processos e de afirmação de outras formas de viver que não estejam submetidas à primazia da reprodução capitalista.

A agroecologia e a agricultura urbana, hoje, têm campos de produção de conhecimentos que, ao mesmo tempo em que dialogam com as formas tradicionais de viver, produzir, alimentar e cuidar, são suficientemente flexíveis para construir inovações que permitam que as tradições sejam resgatadas, mantidas e sobrevivam em contextos socioambientais já degradados.

Hoje, no Neepes, temos trabalhado com diversos grupos sociais que vão nessa direção. Muito está sendo feito, em pequena escala – com esforço comunitário, social e institucional –, para estimular essas alternativas. Seja no reflorestamento e na produção de alimentos no Complexo de Favelas da Penha, no Rio de Janeiro; seja nas farmácias vivas e nos conjuntos habitacionais, que também são espaços de produção de alimentos e de preservação de bacias na periferia de Salvador, religando os integrantes do Movimento dos Sem-teto da Bahia às raízes agrárias das famílias que compõem o Movimento; seja ainda na resistência dos Munduruku ao garimpo e ao capital imobiliário, no rio Tapajós. Por lá, a retomada do território, a reconstrução de aldeias e a manutenção daquelas que estão na área urbana de Itaituba – a capital do garimpo na região, mas também um centro logístico regional para o escoamento de grãos e minério através de hidrovias e ferrovias –, passam não só pela manutenção da cultura indígenas, mas também pela incorporação de elementos da sociedade brasileira que lhes permitem dialogar com o Estado e com a sociedade e reivindicar seus direitos. Por isso, a educação tradicional e formal dos jovens tem sido considerada estratégica.

As respostas aos desafios socioambientais da contemporaneidade estão em um profundo diálogo entre as sabedorias tradicionais e as inovações tecnológicas que permitem que elas permaneçam como parte vivas do cotidiano das comunidades, e não apenas como uma lembrança deixada como legado pelos antepassados. É na solidariedade comunitária e na articulação com outros grupos sociais que possuem interesses contíguos – mesmo que ocupem, às vezes, territórios muito distantes –, que está a força dos movimentos sociais mais combativos, inovadores e resilientes.

Contudo, essas resistências e experiências, embora nos apontem caminhos e direções, não serão suficientes se o restante da sociedade não se conscientizar do próprio papel que possui nessa trama de interesses conflitantes. Não basta que sejamos apenas consumidores mais conscientes. O capitalismo já provou que pode se adaptar para atender todos os tipos de nicho de mercado, mas isso não significa que esteja se tornando mais sustentável. Pelo contrário. Na base dos processos mais modernos de descarbonização das sociedades consideradas centrais, hoje, no planeta, está o deslocamento de um modelo de produção poluente, agressivo, eletrointensivo, devastador, social e ambientalmente injusto e adoecedor para as periferias ao redor do mundo. Enquanto esse processo, que é conhecido na literatura como transferência de risco, for possível, os avanços rumo à sustentabilidade planetária permanecerão restritos a certos espaços, enquanto a maioria da população mundial permanece ameaçada pelos eventos climáticos extremos, pela fome, pela miséria, por doenças e pela violência. 

Para além de apoiar política e institucionalmente as resistências que emergem dos territórios em luta, precisamos nos engajar politicamente nos processos de educação e de luta social que possam estabelecer freios a esse modelo de desenvolvimento que permanece orientado por uma lógica perversa de exclusão, morte e lucros a curto prazo. Precisamos construir espaços de educação política que permita à sociedade reorientar tanto a sua base econômica, quanto o seu arcabouço jurídico para modelos de convivência que respeitem os limites do planeta e os direitos humanos. Assentados na primazia do bem-estar humano e do equilíbrio ambiental; da promoção da saúde e do reconhecimento de que o valor da aventura humana neste planeta está relacionado ao respeito à diversidade, seja qual for a forma com a qual ela se apresente.

(*) Tatiane Matheus é jornalista e pesquisadora em Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão no Instituto ClimaInfo

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