Intelectualidade periférica tem soluções às questões ambientais, mas não está em espaços de poder

Por Tatiane Matheus*

Quando Pedro Álvares Cabral e sua comitiva chegaram ao Brasil, em 1500, o Racismo Ambiental começou no país, conforme destaca a tese da pesquisadora e consultora sobre o tema no Instituto Pólis, Ana Sanches. Doutoranda em Mudança Social e Participação Política na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH)  da Universidade de São Paulo, ela é uma das entrevistadas da série Racismo Ambiental Brasileiro, do ClimaInfo.

Entusiasta do mapeamento participativo como solução, Ana explica a importância de se pensar uma cidade justa, na qual haja incentivo à diversidade e atuação de todos (brancos e não-brancos) em prol na construção dessa nova dinâmica mais inclusiva. Para ela, existe uma “guerra fria” marcada pela violência cotidiana do Estado, que também é uma forma de conflito. “O Brasil é isso: invasão de terras, exploração de corpos, epistemicídio, genocídio de povos e escravização de pessoas. Hoje, nas cidades urbanizadas, (o racismo ambiental) é a falta de saneamento, de água limpa, de energia, de moradia nas cidades e o esgoto a céu aberto”, enfatiza.

Ana se define como caiçara, mulher negra, praiana, que cresceu em periferias. Acredita que ser intelectual e ativista do movimento negro são complementares. “Precisamos combater parte do racismo ambiental elegendo essas pessoas que estão na ponta sofrendo. É preciso continuar políticas de cota social para que as pessoas possam ampliar saberes e política de permanência estudantil. Quem vai planejar as cidades? Serão essas pessoas não apenas pelos seus saberes empíricos, mas também por saberes técnicos”, explica Ana.

ClimaInfo: Como definir o racismo ambiental brasileiro?

Ana Sanches: Existem muitas definições. Cada uma virá com uma perspectiva de quem pesquisa e vivencia (a temática). A minha é urbana. No contexto brasileiro, (o racismo ambiental) inicia com a invasão dos portugueses — mesmo não tendo ainda o conceito de raça e de racismo. O Brasil é isso: invasão de terras, exploração de corpos, epistemicídio, genocídio de povos e escravização de pessoas. Hoje, nas cidades urbanizadas, é a falta de saneamento, de água limpa, de energia, de moradia nas cidades e o esgoto a céu aberto. Está no pensamento de transição verde ou transição justa sem de fato ter todas as populações. É das esferas de decisão não incluir toda a população impactada, isto é, negros, negras, comunidades quilombolas, caiçaras, ribeirinhas, indígenas que estão sofrendo esses impactos sem estar na outra ponta, a das (tomadas de) decisões. Não temos juízes e juízas negros defendendo-os, não temos representação na Câmara dos deputados e no Senado.

Quem traz a conceituação (de racismo ambiental) são Benjamin Chaves e (Robert) Bullard. O Estado, por meio do racismo institucional e estrutural, impede que as pessoas participem dos espaços de poder e decisão. É um processo em construção (a definição do racismo ambiental), e essa é a beleza da pesquisa. A gente pode sempre construir e unir os saberes. Eu falo de um olhar periférico. É  também validar os nossos povos ancestrais, que passaram por um apagamento. Quando se invade uma terra e se assassina as pessoas por vê-las como inferior, mata-se uma cultura também. O Racismo Ambiental vem para nos dizer que essa racialização, que é a inferiorização do ser, que o que a gente entende como colonialidade, é parte desse racismo ambiental. 

ClimaInfo: Podemos entender que o planejamento e o ordenamento das cidades foram e são feitos a partir do racismo ambiental?

Ana: Sim. As cidades foram crescendo, e as questões de infraestrutura não acompanharam as populações de acordo com a renda, a raça e o gênero. Pode-se dizer que o planejamento urbano é racista. Há uma ideia de que o racismo só existe quando há uma intencionalidade muito violenta na fala, ou quando há uma agressão. O racismo ambiental é um tentáculo do racismo estrutural. Quem está planejando essas cidades? São pessoas brancas e, majoritariamente, de classe média alta. Se não tem gente periférica, negra e indígena pensando o ordenamento das cidades, o planejamento e a expansão dos seus próprios territórios, por si só,  já é racista. No geral, temos conseguido participar de espaços para discutir, mas não para de fato decidir. Quando a gente vai olhar o mapa da desigualdade e de conflitos ambientais nas cidades e nas áreas rurais, os impactados são as populações periféricas, de negros e indígenas e com o recorte de serem mulheres chefes de família, muitas vezes, mães-solo.

Por exemplo, o ápice da crise hídrica no Sudeste teve grande visibilidade na mídia. Mas o Nordeste passa por crises iguais ou maiores e não tem essa mesma cobertura da imprensa. O racismo ambiental tem a ver com uma terra, um território. Na cidade de São Paulo, (na crise hídrica) quem ficou sem água foram as pessoas das quebradas (periferias urbanas), porque a Sabesp fechava a torneira para economizar água, e as populações ficavam dois ou três dias sem água. A quebrada não tinha a capacidade de comprar um caminhão-pipa ou uma caixa d’água. Quem mais morreu na pandemia (da COVID-19)? Quem teve dificuldade de manter o isolamento? Tudo isso tem a ver com planejamento urbano, que também inclui mobilidade.

ClimaInfo: Como diferenciar o racismo ambiental do estrutural? É importante nomeá-los? Pensar em desigualdade ambiental é pensar em pessoas?

Ana: Não basta mais falar de desigualdade ambiental, pois os atingidos são as pessoas racializadas. O branco se entende como um ser universal. Quem é racializado no Brasil? Aqueles que são considerados inferiores. Sim, é importante usar o termo, porque é uma disputa de narrativa e de poder. Estamos disputando com ambientalistas brancos que estão há mais de 30 anos pautando uma “justiça ambiental” sem de fato se comprometer com uma mudança com quem de fato está sofrendo e não têm comprometimento racial. Quem são os ambientalistas históricos que sempre ganharam legitimidade para falar? Quando a gente pensa em desenvolvimento sustentável e em conservação da natureza, há correntes ambientalistas, formadas majoritariamente por pessoas brancas, pautando como se fosse tudo igual.

As mudanças climáticas estão aí para comprovar que, quando a gente tem um desequilíbrio, quem morre de sede ou afogado? Qual é a cor dessas pessoas? Qual é a cor das pessoas que estão chorando pelos seus entes queridos mortos pelos desastres? Veja Petrópolis, Bahia e Recife. Por isso, eu pontuo a importância de se usar o termo Racismo Ambiental, que faz parte da construção da sociedade e de um pensamento e é um tentáculo do racismo estrutural. O Aníbal Quijano (sociólogo e humanista peruano) e o Du Bois (sociólogo norte-americano e ativista dos direitos civis de negros) explicam que raça é uma categoria mental da modernidade, ou seja, todo o planejamento e as execuções são feitas de forma racializada, planejada e pensada por pessoas brancas que estão no poder. Por isso, o pacto narcisístico da branquitude e do poder dela. Isso é racismo estrutural.

O que não é branco é o “outro”, como o Edward Said (intelectual palestino-americano) coloca no livro Orientalismo. É nessa linha que está a sua colocação? Como diferenciar o racismo estrutural do ambiental?

Ana:  Sim. Você vai ver uma pessoa negra vindo, você não vai falar que ela é jornalista, que ela é médica ou médico. O negro, ou o indígena, é uma pessoa racializada porque ser branco é “universal”. Stuart Hall (sociólogo jamaicano-britânico) tem conversas com a Bell Hooks (intelectual feminista norte-americana) a respeito disso. O Dennis Oliveira (ativista e professor da USP) traz isso em seu livro (Racismo estrutural numa perspectiva histórico-crítica).

O racismo é uma árvore enraizada na nossa categoria mental, na própria estrutura e nas formas de planejar a sociedade, as cidades e as políticas públicas. O Racismo Ambiental vai derivar desse racismo estrutural. Se vivemos em uma sociedade racista, todas as demais construções são racistas. Quando falamos de racismo ambiental, estamos falando do meio ambiente, mas está totalmente ligado à questão social. Justiça social é uma das coisas que vai se pautar dentro do Racismo Ambiental, porque ambos se complementam. Racismo Ambiental tem tudo a ver com pessoas. É uma ideia que foi sempre pensada por indígenas, mas que a colonização veio romper. Essa relação com o meio ambiente, com a preservação e com a espiritualidade não tem nada a ver (na visão dos colonizadores), pois o que vale é o ouro, o “vamos enriquecer”.

Não adianta salvar o rio se você está matando quem protege os rios, se está assassinando as populações indígenas e quilombolas. Para além do que é palpável, há a questão cultural. A cultura periférica, negra, quilombola, indígena, ribeirinha e caiçara são sabedorias (a serem preservadas). A Vale, por exemplo, matou o rio (Doce), mas também (matou) os modos de sobrevivência daquelas pessoas que dependiam do rio para comer e cultuar sua religiosidade. É muito mais: não é só árvore, não é só terra, não é só rio. É gente, é cultura!

ClimaInfo: Ainda é difícil para o brasileiro enxergar o apartheid das cidades diante do racismo institucionalizado e estrutural, já que é o racismo ambiental não é enxergado? Por quê?

Ana: Os brasileiros têm o perfil histórico de acreditar no mito da democracia racial. Quando você cresce em uma sociedade que diz que você vai conseguir tudo se você se esforçar e, que você vai conseguir tudo por meio do seu mérito individual, é muito difícil entender como uma questão ambiental e social vai interferir em alguma coisa na sua vida. Para muita gente, é difícil a razão pela qual não está inserida em um debate crítico, político. Estão inseridas no debate da alienação do capital. Demora-se duas horas no trânsito para chegar no trabalho, ganha pouco e é maltratado no trabalho subalternizado. Não tem tempo para pensar. Não está comendo, tem filho doente e parente morrendo. Nem culpabilizo a sociedade, mas o sistema que priva essas pessoas de uma educação crítica e libertadora, como dizia Paulo Freire. 

Esse jogo está virando, porque estamos tendo mais acesso à educação —  por mais que tenhamos críticas aos espaços educacionais —, nós estamos colocando uma população periférica, negra, indígena e quilombola nos espaços que antes mal passavam na porta ou, se entravam, eram para limpar ou para servir. Por isso, é muito importante o papel do movimento social, da imprensa, da intelectualidade negra, indígena e de mulheres dentro da academia. É um lugar de escuta em que estamos disputando narrativas. Estamos pesquisando, mas ao mesmo tempo vivenciando. Temos pensadoras como a Conceição Evaristo (escritora brasileira). Quantas “escrevivências” não podemos fazer? Coisas que outras intelectuais, por mais comprometidas e éticas que sejam, jamais poderão fazer com a profundidade que podemos ter.

Trazemos questões que são mais que intensas, são muito simbólicas para uma representatividade, para o nosso povo. É um espaço que a gente precisa disputar para se reeducar e se reconstruir. Não será do dia para a noite. As pessoas acham que o apartheid é só o que aconteceu na África ou é o que aconteceu nos Estados Unidos com bairro de negro ou uma pessoa não poder sentar em tal lugar. Aqui a gente pode? A gente pode entre aspas, né? 

ClimaInfo: O que é mapeamento participativo (MP) e como ele pode ser inserido nos projetos para engajar pessoas e trazer melhorias para as comunidades?

Ana: As experiências que eu tive com o mapeamento participativo foram todas bem interessantes, pois ele permite que as pessoas daquela comunidade, daquela localidade, construam e apontem quais as questões daquele território. A partir da visão daquele indivíduo periférico, ele vai pontuar, vai construir as questões que importam para ele. Essa ferramenta permite que uma intelectual acadêmica se junte com um intelectual periférico e, juntos, construam ali uma possibilidade de soluções para o território. Por exemplo, outro conceito é o do termo ‘territorial coletivo’, que é muito usado pela Rede Favela Sustentável. É essa ideia de acordos de saberes para a construção de soluções. As pessoas já sabem o que estão passando. Muitas empresas e o estado falam: “ah, mas a gente não sobe o morro”, “não sabemos o que está acontecendo”, “ali é quebrada, é beco, é difícil”. Mas a população pode te falar. A partir do mapeamento participativo, essas ideias podem ser construídas, há muitas pessoas comprometidas com isso. Não necessariamente surgirão soluções, mas, pelo menos, apontamentos e dados naquela região, e isso pode ser georreferenciado.

ClimaInfo: Então os saberes periféricos são importantes na construção de soluções aos problemas ambientais?

Ana: Totalmente! É essa intelectualidade periférica que tem muitos saberes, mesmo que não sejam saberes estritamente moldados no acadêmico ABNT, mas são saberes, são intelectualidades e são reflexões muito importantes.

ClimaInfo: Muitos profissionais que pensam as cidades, mesmo com o foco nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), não enxergam as questões do Racismo Ambiental? Como unir esses projetos com os saberes periféricos?

Ana: O mapeamento participativo e o termo territorial coletivo são possibilidades. Por qual motivo os gestores e gestoras que estão nos planejamentos urbanos das cidades não pensam em raça pelos ODSs? Porque não têm ODSs de raça. Tem um ODS específico de combate às desigualdades, outro de gênero e outro de meio ambiente. O que existe são subitens dentro dos combates da desigualdades que falam do combate ao racismo. Temos planejadores e secretarias fazendo vários projetos e se encaixando em tal ODS, mas olham o desenvolvimento sustentável como se fosse uma questão de proteção de rio, melhora da qualidade do ar, mas não se pautam nas questões sociais e de diferenças de território. Existem dois problemas aí: quem faz o planejamento e quem pensa os ODSs. Já existe um esforço grande no movimento negro e entre os relatores dos ODSs da ONU para que isso seja incluído. Às vezes, as pessoas acham que a categoria raça é uma categoria única. Não é. Você pode estudar gênero e raça, desenvolvimento sustentável e raça, desigualdade e raça. O racismo é central, é transversal a tudo isso, principalmente quando falamos de quem está na ponta sofrendo, e de quem está na ponta decidindo nos espaços de poder.

ClimaInfo: Tem aumentado a relevância dos indígenas, dos povos tradicionais, enfim, não-brancos na defesa ambiental, ou ainda é um lugar da branquitude? 

Ana: Ainda é um lugar da branquitude, pois são esses grupos é que estão decidindo e são institucionalizados. Estão nos concursos, na academia, no Senado, no governo, no poder judiciário, em todos os espaços. O que está acontecendo é que esses movimentos estão se articulando para ter visibilidade. Agora, com a mídia e internet, isso faz com que eles ganhem mais visibilidade. É uma disputa. Quantos professores negros e indígenas tivemos? Atualmente, temos vários alunos negros e indígenas pelas cotas sociais, mas ainda não temos política de permanência dessas pessoas.

ClimaInfo: Na sua visão, o que deve ser feito nas diferentes esferas da sociedade para um combate real ao Racismo Ambiental?

Ana: Pergunta de milhões. Tem muita coisa para se fazer. No Pólis, fazemos uma campanha vote em cidades justas, vote em pessoas negras, indígenas e pessoas trans. Para começar, é preciso entender que elas têm repertório e devem estar nesses espaços de decisão. A gente precisa votar nessa gente. Ainda votamos no homem branco engravatado. Precisamos combater parte do Racismo Ambiental elegendo essas pessoas que estão na ponta sofrendo. É preciso continuar as políticas de cota social, para que as pessoas possam ampliar saberes e política de permanência estudantil. Quem vai planejar as cidades? Serão essas pessoas, não apenas pelos seus saberes empíricos, mas também por saberes técnicos que podem ser complementares ou até questionados, para novos saberes serem construídos. 

Essas pessoas nos espaços de poder é o que vão nos ajudar a combater o Racismo Ambiental, estrutural e institucional. Nesse sentido, as pessoas brancas são muito importantes. Pessoas brancas votando em pessoas negras e indígenas. Isso é ser anti-racista. Não adianta ser antirracista nas redes sociais. Temos muitos caminhos para soluções. Está tudo interligado. A Coalizão Negra por Direitos fala muito sobre justiça ambiental ser justiça social e justiça racial. A Rede Quilombação fala que a democracia não chegou à periferia. Esses ideais de inclusão, diversidade, democracia, de que somos todos iguais… Quem está na periferia? A população negra e pobre.

As pessoas de uma elite branca estão questionando que devemos lutar pela democracia. Na periferia, a democracia nunca existiu, com a violência do Estado (send praticada) de várias formas. Quando se pensa em conflito, principalmente na área ambiental, pensa-se quando há um embate: violência no campo, invasão de terra indígena… Realmente é. Mas, nas cidades, quando há uma população morrendo porque o ar está poluído, porque não tem água, porque está vivendo em um solo contaminado, isso também é um conflito ambiental. Mesmo o público que está sendo de alguma forma violentado não está conseguindo reagir por já normalizar algumas situações em alguns espaços.

Contestando algumas teorias e alguns conceitos acadêmicos, essa violência cotidiana do Estado é uma forma de conflito que lembra uma ‘Guerra Fria’. Um lado está morrendo, e outro está deixando morrer. Tem a necropolítica para deixar viver e fazer morrer. A gente normaliza mortes por bala ou por doenças que poderiam ser evitadas. O combate ao Racismo Ambiental virá só com ética e comprometimento, que também deve partir das pessoas brancas. A gente, negra, não vai conseguir sozinha, infelizmente.

(*) Tatiane Matheus é jornalista e pesquisadora em Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão no Instituto ClimaInfo

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