ClimaInfo responde: Principais perguntas sobre o último Relatório Climático da ONU

IPCC AR6 relatório síntese
IPCC AR6

Introdução

Este documento é um tira-dúvidas sobre o Relatório de Síntese (SYR) do Sexto Ciclo de Avaliações (AR6) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), divulgado em 20 de março de 2023. 

O texto é a mais atual sistematização das orientações do Painel sobre como os tomadores de decisão, nos governos e nas empresas, devem agir para frear a crise climática neste século, com especial atenção para a ação climática necessária nesta década. 

As [Referências entre parênteses] apontam para seções específicas do Resumo para Formuladores de Políticas (SPM) que serviram de referência para responder a cada pergunta abaixo.

Leia também: Guia para as conclusões do Relatório de Síntese IPCC AR6. 

Relatório de Síntese (SYR) do AR6:

O que tem de novo neste relatório?

Este SYR é uma síntese cuidadosa de quase uma década de pesquisa em seis relatórios do Sexto Ciclo de Avaliação (AR6) do IPCC. O Resumo para Formuladores de Políticas (SPM) é um resumo desta síntese. Ainda assim, o Relatório de Síntese e seu SPM estabelecem coisas muito importantes.

Pela primeira vez, um documento de muito alto nível como o SPM, que todos os governos aprovaram, explicita as reduções de emissões necessárias para limitar o aumento da temperatura a 1,5°C e 2°C, tanto para todos os gases de efeito estufa, quanto para o CO2 especificamente [uma tabela em B.6.1]:

Para um caminho alinhado a 1,5°C, sem ou com o mínimo de extrapolação desta meta, são necessárias reduções médias de emissões de CO2 em relação aos níveis de 2019 da seguinte ordem: 

2030 = 48% 

2035 = 65% 

2040 = 80% 

2050 = 99%

Outro destaque deste relatório é o verdadeiro trabalho de síntese que os cientistas fizeram. Por exemplo, [Figura SPM.7] apresenta uma espécie de ‘menu’ para a ação climática em vários setores, tanto para reduzir as emissões quanto para a adaptação, demonstrando de forma crucial o custo e outros fatores que ajudam os formuladores de políticas a ver quais opções de mitigação são mais baratas, mais rápidas de escalar, mais eficientes e etc.

Estamos condenados? 

Não estamos. “Condenados” implica que não há nada que possamos fazer, e o relatório mostra em detalhes porque dizer isso não tem base científica. 

Simplesmente, se as emissões forem reduzidas a zero até meados do século, as concentrações atmosféricas de CO2 se estabilizarão. E isso irá deter o aquecimento e estabilizar as temperaturas superficiais. Para tanto, o mundo deve reduzir substancialmente o uso de combustíveis fósseis e o desmatamento. Os cortes rápidos e profundos nas emissões gerarão uma estabilização relativamente rápida nas temperaturas, dentro de algumas décadas. [B.6, C.3.2].

A má notícia é que o clima já mudou de muitas maneiras irreversíveis. A [Figura SPM.1] ilustra bem como o clima já mudou e vai mudar ao longo da vida de três gerações, nascidas em 1950, 1980 e 2020. Mudanças generalizadas e rápidas em nosso planeta já estão afetando o clima e os extremos climáticos em cada região, causando impactos adversos, perdas e danos à natureza e às pessoas. [ver A.2, A.2.2 e A.2.3].

Mas ainda temos escolhas sobre o futuro que queremos, e ainda faz sentido fazer essas escolhas – impactos e perdas e danos relacionados à mudança do clima aumentam com cada fração extra de grau de aquecimento global. [ver B.3, B.3.2 e B.3.3; C.2, C.2.1, C.2.2 e C.4.3].

É verdade que os planos climáticos dos países sob o Acordo de Paris (NDCs) ainda não garantem que o aquecimento se limite a 1,5°C durante o século 21 ou mesmo a 2°C [A.4, A.4.3, A.4.4], mas podemos fechar essa lacuna fazendo o melhor das opções que temos – energia solar e eólica, sistemas urbanos eletrizantes, infraestrutura verde urbana, eficiência energética, gestão pelo lado da demanda, melhoria da gestão de florestas e de cultivos, além da redução do desperdício e da perda de alimentos [A.4.2].

O relatório diz que a meta de 1,5°C está fora de alcance?

Não diz. Ainda é possível limitar o aquecimento a 1,5°C até o final do século, mas isso é um desafio e exigirá reduzir pela metade as emissões de CO2 até o final desta década, e reduzir as emissões a zero líquido até meados do século.

Isto significa, por exemplo: aposentar antecipadamente a infraestrutura de combustível fóssil existente; cancelar novos projetos fósseis porque eles esgotariam sozinho o orçamento de carbono restante ao mundo; transição rápida para fontes de energia de carbono zero e tecnologias industriais de baixo carbono; e eletrificação acelerada de edificações, transportes e indústrias. 

Também significa resistir ao lobby da indústria de combustíveis fósseis que está tentando retardar as mudanças necessárias em todas as geografias. 

Fazer tudo o que podemos para limitar o aumento de temperatura e terminar um pouco mais de 1,5°C, por exemplo, é muito melhor do que deixar a temperatura subir mais para 3°C ou 4°C, que é o que estamos fazendo atualmente [B.1.1, B.3, B.3.2 e B.3.3, B.7]. 

O relatório diz que o Acordo de Paris não é mais viável?  

Quando o mundo assinou o Acordo de Paris, ele refletiu um novo consenso político global sobre a ação climática, jogando o tema para o topo da agenda. O tratado exige que os aumentos de temperatura sejam limitados a 2°C, e de preferência não mais do que 1,5°C, até o final deste século. 

Os líderes mundiais sabiam que este era um objetivo ambicioso quando concordaram com ele. E por isso deveriam estar fazendo mais, inclusive no financiamento climático e de adaptação que ainda perde muito para os fluxos financeiros destinados aos combustíveis fósseis.

O caminho mais ambicioso e único alinhado com Paris utilizado no relatório (SSP1-1.9) nos dá 50% de chance de limitar o aquecimento a cerca de 1,5°C até o final do século, sem ou com um excedente limitado. As melhores estimativas sobre quando o nível de aquecimento global de 1,5°C será atingido estão no curto prazo, que este relatório define como 2040 ou mais cedo. Com isso, não é mais possível cumprir a meta sem emissões negativas – ultrapassando temporariamente o 1,5°C  de aquecimento e, em seguida, removendo ativamente o CO2 da atmosfera. 

Essas abordagens de emissões negativas na remoção de dióxido de carbono (CDR) têm que ser usadas com cuidado devido a várias restrições e ressalvas ambientais e socioeconômicas, e elas representam apenas uma pequena parte da solução. E quanto mais reduzirmos as emissões, menos dependeremos de remoções. [B.5.1, B.6.2, B.6.3, B.6.4].

Devemos abandonar a meta de 1,5°C e nos concentrar em 2°C?

Não há nada no Relatório de Síntese que apoie esta conclusão. As discussões sobre 1,5°C vs 2°C são irrelevantes no curto prazo porque o esforço necessário nesta década é o mesmo para garantir ambas as metas. Todos os caminhos modelados para limitar o aquecimento a 1,5°C e a 2°C envolvem reduções rápidas e profundas e, na maioria dos casos, imediatas das emissões de gases de efeito estufa em todos os setores nesta década. [B.6].

Podemos contar exclusivamente com a adaptação para resolver a mudança climática? Se é tão desafiador limitá-la, por que não simplesmente adaptar-se ao que está por vir?

Muitos lugares no mundo já precisam se adaptar às mudanças climáticas, e outros precisarão fazê-lo no futuro, mas a redução das emissões ainda é a melhor ferramenta que temos para limitar os impactos da mudança climática. Quanto mais emissões, mais adaptação será necessária – e ela será mais cara. 

E há limites para a adaptação. Por exemplo, acima de 1,5°C de aquecimento, milhões de pessoas nos Andes e Himalaias que obtêm sua água das geleiras e da neve podem experimentar uma escassez de água à qual não podem se adaptar. Além de 2°C, mesmo com medidas de adaptação,  haverá perdas irreversíveis para a natureza, incluindo a destruição de 99% dos recifes de corais tropicais. Acima de 3°C de aquecimento global, o calor afetará grandemente a saúde das pessoas e, portanto, os sistemas de saúde, ao mesmo tempo em que 30% das áreas de produção de alimentos se tornarão inadequadas.

Quanto mais gases de efeito estufa emitimos, maior é a chance de que as medidas de adaptação sejam mais caras e menos eficazes, aumentando a chance de “desadaptação” ou “má adaptação”, que causam novos problemas. Por exemplo, o uso de mais fertilizantes e pesticidas para se adaptar a colheitas cada vez piores devido ao calor extremo levará a mais degradação dos solos e da água.

Será que estamos à beira de pontos de ruptura (tipping points), de ciclos de retorno (feedback loops) e de mudanças climáticas incontroláveis (runaway climate change)?

Se reduzirmos as emissões rápida e acentuadamente nesta década, as temperaturas se estabilizarão e muitos impactos negativos limítrofes serão evitados. Entre os eventos de ruptura que poderão ser evitados estão os ciclos de retorno (feedbacks loops ou feedbacks climáticos positivos), que implicam que cada aumento no aquecimento leva a muito mais aquecimento. 

Por exemplo, temperaturas mais altas levam ao derretimento do permafrost ártico, que, por sua vez, libera gases de efeito estufa atualmente congelados e contidos nele, e esses gases elevam ainda mais as temperaturas, formando um ciclo de aceleração. 

Mas ainda não estamos nessa situação de mudanças climáticas incontroláveis. A conclusão mais importante deste relatório é que ainda está ao alcance da humanidade conter a mudança climática por meio dos cortes de emissões de gases que aquecem o planeta. 

O que o relatório significa para os pedidos de indenização por danos climáticos? 

Muitos dos piores impactos da mudança do clima são sentidos nos países que menos contribuíram para o problema. Essas pessoas não têm recursos para lidar com os danos. 

Sem ações urgentes e significativas de mitigação e ações aceleradas de adaptação, as perdas e danos continuarão a aumentar, particularmente na África, PMDs, SIDs, América Central e do Sul, Ásia e Ártico, e afetarão de forma desproporcional as populações mais vulneráveis nessas geografias.

Ao mesmo tempo, os cientistas são agora capazes de mostrar como eventos climáticos extremos específicos foram tornados mais prováveis ou mais intensos pelas mudanças climáticas – a chamada ciência da atribuição. Os avanços desse ramo de pesquisa são reconhecidos no Relatório de Síntese. É provável que essa nova ciência dê subsídios a pedidos de indenização e litígios relacionados a danos climáticos. E o litígio relativo à mudança climática está se tornando mesmo uma tendência – o número total de casos mais do que dobrou desde 2015.

Os pedidos de maior financiamento climático por parte dos países ricos também crescem, já que os atuais fluxos não estão nem perto do necessário. O Relatório diz que se atrasarmos as medidas de adaptação e mitigação, há o risco de escalada de custos, bloqueio de infraestruturas, ativos irrecuperáveis e menos viabilidade e eficácia de ações posteriores. [C.2, C.2.1, C.2.2 e C.4.3].

Os governos estão fazendo o suficiente para enfrentar a mudança climática? 

As políticas e leis que tratam da mitigação têm se expandido constantemente desde o ciclo anterior do IPCC (AR5), mas os planos existentes e as lacunas de implementação ainda nos levam a um futuro perigoso. A somatória das contribuições nacionalmente determinadas (NDCs), como são chamadas as metas dos países sob o Acordo de Paris, ainda fariam o aquecimento exceder 1,5°C durante o século 21, e tornariam mais difícil limitar o aquecimento abaixo de 2°C [A.4, A.4.3, A.4.4]. 

Podemos fechar essa lacuna com metas climáticas mais ambiciosas, que levem a cortes maiores com mais antecedência. O relatório reitera que nada pode substituir cortes rápidos e imediatos de emissões [A.4.2].

Por que a comunidade climática exige reduções de emissões quando podemos simplesmente sugar o carbono da atmosfera? 

O relatório reconhece que não é mais possível atingir a meta de temperatura de 1,5°C de Paris neste século sem emissões negativas – ou seja, ultrapassar temporariamente o 1,5°C de aquecimento e depois remover ativamente o CO2 da atmosfera. Mas as abordagens de remoção de dióxido de carbono (CDR) têm várias restrições ambientais, socioeconômicas e tecnológicas e elas representam apenas uma pequena parte da solução. E quanto mais reduzirmos as emissões, menos dependemos de CDR.

O Relatório de Síntese destaca que é mais difícil retirar CO2 da atmosfera e armazená-lo de vez, do que não emiti-lo em primeiro lugar. Não faz sentido fazer grandes esforços para capturar e enterrar CO2 quando ainda o estamos extraindo e queimando pelo uso de combustível fóssil.  Isso é como tentar salvar o barco de um naufrágio enquanto fazemos novos furos nele.

A remoção de carbono em grande escala também tem grandes desvantagens. A bioenergia com captura e armazenamento de carbono (BECCS), por exemplo, exigirá grandes quantidades de terra para o cultivo de plantas combustíveis, e pode acabar competindo com a terra para o cultivo de alimentos. Neste momento, as tecnologias de que precisamos para a remoção de carbono em larga escala são caras e não estão disponíveis para uso em escala. 

Precisamos nos preocupar com o aquecimento quando podemos usar a geoengenharia? 

Não sabemos se a engenharia climática e a geoengenharia irão realmente melhorar as coisas ou mesmo funcionar. Confiar nessas tecnologias nesta fase seria extremamente perigoso. 

Nenhum dos caminhos “1.5” do Relatório inclui a geoengenharia como parte da mistura de soluções para limitar o aumento da temperatura porque as formas como isso poderia ser feito simplesmente não estão desenvolvidas. De toda maneira, a geoengenharia não consegue lidar com os outros impactos da queima de combustíveis fósseis, como a acidificação dos oceanos e a poluição do ar. 

Há também profundas questões de governança sobre geoengenharia. Saiba mais sobre como a geoengenharia foi abordada pelo IPCC neste artigo em inglês.

Precisamos da captura e armazenamento de carbono (CCS) para atingir 1,5°C?

A infraestrutura existente de combustível fóssil – por si só – fará o suficiente para nos elevar o aquecimento para além de 1,5°C, se continuarmos a utilizá-la como estamos fazendo agora. Para permanecer dentro do orçamento de carbono para essa meta, a infraestrutura de combustíveis fósseis precisa ser desativada, usada menos, trocada para combustíveis com baixo teor de carbono, ou reconfigurada com CCS (captura e armazenamento de carbono, na sigla em inglês). 

O IPCC deixou claro em seu relatório AR6 WG3 que a CCS deve ser priorizada para emissões residuais, e que qualquer nova infraestrutura de combustíveis fósseis irá explodir o orçamento de carbono de uma meta alinhada com Paris. 

Isto significa que a CSS é uma das opções para reduzir as emissões da infraestrutura existente, mas longe de ser a única ou a melhor. O custo é um grande problema: nos últimos anos, a energia renovável tornou-se mais barata do que o uso de CSS para neutralizar emissões. Em outras palavras, será mais fácil e mais barato construir mais eólica e solar e fechar os antigos ativos de combustíveis fósseis.

O que os cientistas querem dizer com “a curto prazo” e “a longo prazo”?

No Relatório de Síntese, o curto prazo é definido como o período até 2040. O longo prazo é definido como o período além de 2040. 

O IPCC está usando cenários de emissões futuras implausivelmente ruins, como o RCP8.5. É uma tática para assustar?

Os cientistas climáticos consideram uma série de cenários de como o clima pode mudar no futuro, com base no que os tomadores de decisão fazem. Estes incluem um caminho de baixas emissões – o mais alinhado com o Acordo de Paris – e um cenário de altas emissões (SSP5-RCP8.5), que imagina um mundo onde não fazemos a transição de nossa economia da extração e queima de combustíveis fósseis.

Felizmente, o mundo não está no caminho para o pior dos cenários de altas emissões, mas ainda é importante que os cientistas explorem essa possibilidade porque ela ilustra a diferença entre ação e inação climática. Com base nas tendências atuais, o mundo está caminhando para 3°C ou 4°C de aquecimento até o final do século – isso já é bastante ruim e mostra que precisamos fazer mais para lidar com a mudança climática.

Por que a plenária do IPCC é confidencial?

O IPCC está comprometido com um processo transparente para produzir seus relatórios. Centenas de especialistas, cientistas e representantes do governo lêem cada rascunho do relatório e decidem sobre seu conteúdo final, ponto a ponto. Todos os rascunhos e comentários são publicados junto com o relatório final. Centenas de ONGs de todas as geografias, que são observadores oficiais do IPCC, podem acompanhar as sessões plenárias e, de fato, costumam levantar muitos pontos importantes. A participação das ONGs também ajuda a garantir um processo justo e transparente. 

ClimaInfo, 21 de março de 2023.

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