Na base da correria, sem qualquer debate público e ignorando os interesses e os direitos daqueles que serão os mais afetados. Foi deste modo autoritário que a Câmara dos Deputados aprovou na noite de 3a feira (30/5) o projeto de lei (PL) 490/2007, que estabelece uma restrição inconstitucional aos Direitos Originários dos Povos Indígenas por suas terras ancestrais, inventando um “marco temporal” a partir da data de promulgação da Constituição Federal, em outubro de 1988.
O dia foi marcado por tensões em todo o país. Em diversas partes, movimentos indígenas foram às ruas para protestar contra o PL e a ofensiva da bancada ruralista e dos partidos do Centrão fisiológico contra as políticas ambiental e indigenista. Mesmo com o cenário político em Brasília já indicando uma aprovação do projeto, os indígenas reiteraram a sua inconstitucionalidade e a disposição de seguir lutando pelos seus direitos, mesmo em face a um dos piores Congressos que o Brasil teve o desprazer de ter em toda a sua história.
“Não sei dizer se vamos conseguir impedir essa votação. Mas o que posso afirmar é que nós estamos cansados de sofrer essa violência. Estamos cansados de ser ameaçados e de ter nossa vida sob todo esse impacto que o não indígena nos traz”, disse Thiago Karai Djekupe, uma das lideranças da Terra Indígena Jaraguá, em São Paulo, em entrevista à Agência Brasil.
Na região metropolitana de São Paulo, as manifestações se concentraram em um trecho da Rodovia dos Bandeirantes – um nome sugestivo, aliás, considerando como eles contribuíram diretamente para o genocídio de diversos Povos Originários no Brasil. A PM paulista, herdeira moral dos “desbravadores” de séculos atrás, reagiu com violência para desobstruir a via, lançando bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral contra os indígenas. Band, CBN, Estadão, Folha, g1, Metrópoles e UOL, entre outros, repercutiram as ações.
Em outros estados, como Amazonas, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul, as cenas se repetiram, com indígenas protestando contra a votação do marco temporal e uma resposta agressiva das forças policiais – as mesmas, aliás, que passaram meses “deitadas eternamente em berço esplêndido” assistindo à escalada golpista que resultou na invasão criminosa da Praça dos Três Poderes por criminosos bolsonaristas.
Até mesmo a ONU se colocou contrária ao PL. “Aprovar o projeto conhecido como marco temporal seria um grave retrocesso para os Direitos dos Povos Indígenas no Brasil, contrário às normas internacionais de Direitos Humanos”, disse o chefe da ONU Direitos Humanos na América do Sul, Jan Jarab, citado pela Agência Brasil. “A posse das terras existentes em 1988, após o expansionismo da ditadura militar, não representa a relação tradicional forjada durante séculos pelos Povos com seu entorno, ignorando arbitrariamente seus direitos territoriais e o valor ancestral das terras para seus modos de viver”.
No plenário da Câmara, a bravura da bancada do cocar chamou a atenção. Liderada pela deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG), os parlamentares indígenas tentaram conter a sanha ruralista, mesmo com a diferença brutal de força com o outro lado. “É um genocídio legislado. O PL 490/07 é um perigo para a humanidade por permitir que se adentre territórios indígenas”, protestou a deputada.
Nada disso, porém, sensibilizou os demais deputados. Para atrapalhar, a divisão do governo federal enfraqueceu a resistência ao atropelo dos ruralistas e do Centrão. No plenário, a liderança governista até chegou a orientar o veto à proposta, mas reiterou que respeitava a “pluralidade” dentro dos partidos. O PSB, que faz parte da base governista e tem a Vice-Presidência, liberou sua bancada.
Ao final, o que se viu foi uma encenação de democracia. Por 283 votos a 155, a Câmara majoritariamente decidiu pela retirada de um direito fundamental consagrado na Constituição para uma das parcelas mais vulneráveis de seus cidadãos. Infelizmente, a diferença entre os bandeirantes de ontem e os deputados ruralistas e fisiológicos de hoje é quase nula: os indígenas seguem sendo uma inconveniência para aqueles que só enxergam cifrões e poder no lugar de pessoas, culturas e tradições.A aprovação do marco temporal pela Câmara teve ampla repercussão na imprensa, com destaques em veículos como Estadão, Folha, g1 e O Globo.
ClimaInfo, 31 de maio de 2023.
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