No apagar das luzes de maio, mês em que se celebrou o Dia Nacional da Mata Atlântica, mais uma vez a vocação do Brasil – de abrigar e proteger uma das maiores riquezas naturais planetárias e, assim, proteger a vida – foi deixada de lado em detrimento a ataques nefastos e ameaças institucionais a este bioma que é berço da biodiversidade e de nascentes de rios que abastecem, com água e energia, mais de 70% da população brasileira.
A Mata Atlântica, bioma que abriga, inclusive, a árvore que deu nome ao país, hoje, possui menos de ¼ (24%) da sua cobertura vegetal original preservada em fragmentos do que já foi, um dia, uma das maiores florestas tropicais das Américas.
Estudo aponta que a Lei da Mata Atlântica (11.428/2006) ajudou a proteger 1,6 milhão de hectares da floresta. Porém, os ataques à legislação, presenciados no Congresso Nacional, mostram que o que restou da floresta reconhecida como Patrimônio Nacional, pela Constituição de 1988, está severamente ameaçada de extinção e segue sob o jugo da ganância e da ignorância; do lucro a qualquer preço e de jogos políticos nefastos.
Mais uma vez, o desconhecimento sobre a “interdependência entre conservação da natureza, desenvolvimento econômico, produção agropecuária, prosperidade e saúde”, como aponta este artigo do Estadão, esteve à mesa dos parlamentares eleitos para representar os interesses da nação.
A ação da Câmara dos Deputados, em 24 de maio, de reinserir “jabutis” que enfraquecem a Lei da Mata Atlântica e que tinham sido impugnados pelo Senado na apreciação prévia da Medida Provisória 1150/2022, ficou conhecida como a “noite das boiadas”. A MP altera a Lei da Mata Atlântica. Agora, caberá ao presidente Lula vetar do texto as medidas que visam abrir as porteiras para a devastação do que sobrou da floresta.
O enfraquecimento da legislação representa um tiro no pé da retomada de credibilidade internacional do Brasil, que está em andamento desde que o presidente Lula voltou à presidência com um discurso de proteção ambiental e dos povos indígenas e de combate à crise climática e ao desmatamento.
Como destacam os pesquisadores Luís Fernando Guedes Pinto e Marcia Hirota, da Fundação SOS Mata Atlântica, no artigo no Estadão, o bioma perdeu, em 2022, o equivalente a um parque do Ibirapuera a cada três dias, pelo desmatamento. Foram 55 hectares desmatados diariamente, “acumulando a emissão de 9,6 milhões de toneladas de CO2 equivalente na atmosfera” e agravando a crise climática.
Os eventos climáticos extremos como os que atingiram a Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e, mais recentemente, São Sebastião, no Litoral Norte de São Paulo, são associados ao desmatamento e possuem, ainda, um componente de injustiça climática. Tragédias como deslizamentos de terra e enchentes ocorreram neste bioma, resultando em mortes e enormes prejuízos e afetando principalmente as populações mais pobres e vulneráveis.
Além disso, o Brasil e o mundo não alcançarão a meta climática do Acordo de Paris se o desmatamento não for interrompido, incluindo o da Mata Atlântica. Como os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima já demonstraram, o Brasil é um dos países mais vulneráveis às alterações climáticas. É também um dos maiores emissores dos gases que causam o efeito estufa – sendo que a principal fonte desses gases em nosso país é o desmatamento.
Com o novo Sistema de Alertas de Desmatamento da Mata Atlântica (SAD Mata Atlântica), foi possível identificar o desmatamento recente, somadas florestas maduras e jovens, foi da ordem de 75.163 hectares. Para pelo menos minimizar os impactos, afirmam, seria necessário o plantio de três milhões de hectares de matas para a proteção de nascentes e rios, “garantindo água e eletricidade para mais de 70% da população brasileira”.
O Congresso, ao contrário, luta para afrouxar e adiar a implantação efetiva do Código Florestal. “O futuro do bioma depende do veto do Presidente da República”, afirmam.
Entenda o que está em jogo:
Além do enfraquecimento das regras de proteção do bioma, naquela “noite das boiadas”, os deputados também aceleraram a tramitação de projeto que dificulta a demarcação de Terras Indígenas e aprovaram parecer que tira poderes do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e do Ministério dos Povos Indígenas.
O texto da MP 1150/2022 prevê as seguintes medidas, conforme o g1:
– Prorrogação para que imóveis rurais façam adesão ao Programa de Regularização Ambiental (PRA);
– Fim da exigência de compensação em caso de desmatamento fora de Áreas de Preservação Permanente para a construção de empreendimentos;
– Flexibilização do desmatamento de vegetação original (primária) e secundária em estágio avançado de regeneração;
– Transferência para a competência municipal de parecer técnico para desmatamento em área urbana, antes realizado por órgãos ambientais estaduais;
– Fim da obrigatoriedade de estudo prévio de impacto ambiental para implementação de empreendimentos.
– Teve ainda a aprovação, na Câmara dos Deputados, do PL 490/2007. O projeto de lei estabelece o marco temporal para restringir as demarcações de Terras Indígenas no Brasil. Onde há TI, há preservação ambiental.
Sem floresta, sem clima
Os cientistas alertam que a Mata Atlântica está ameaçada de extinção. Da sua cobertura original, uma área equivalente a 3,6 vezes o território da Alemanha (1,3 milhão de km2) atinge um percentual (24%) abaixo do limite mínimo para a sua conservação, que é de 30%. O bioma está, hoje, entre os cinco hotspots com biodiversidade mais ameaçada do mundo. Nos últimos meses foram descritas novas espécies de árvores e animais, até em regiões muito estudadas, como nos estados de São Paulo e no Rio de Janeiro.
Além disso, a ameaça à legislação coloca em risco também a segurança hídrica e alimentar de 145 milhões de brasileiros que vivem nos 3.429 municípios e 17 estados onde a Mata Atlântica está presente.
É na Mata Atlântica onde 80% da economia nacional é gerada. A região por onde o bioma se estende produz a maioria das culturas básicas e dos alimentos consumidos internamente no Brasil. Ela também está conectada ao mundo por meio do comércio de commodities como celulose, açúcar, soja, carnes, café e suco de laranja.
Agronegócio, indústria, comércio, serviços, hospitais, escolas, centros de pesquisa, escritórios, residências: todos dependem dos serviços ecossistêmicos prestados pela Mata Atlântica – seja na produção de água potável, regulação do microclima regional ou até mesmo na polinização de importantes culturas. É tudo isso que fica em risco cada vez que a Mata Atlântica perde sua cobertura original.
Ao mesmo tempo, reverter o ponto crítico no qual a Mata Atlântica se encontra abre inúmeras oportunidades de desenvolvimento regional e para o Brasil. Para eliminar o risco de extinção e atingir pelo menos o percentual de preservação necessário para a perpetuação do bioma, é urgente que se interrompa o desmatamento e que seja implementada uma restauração rápida e em larga escala.
A restauração florestal é atividade que gera empregos e riqueza no campo. A recuperação e a preservação do bioma podem também contribuir de forma significativa para o sequestro de carbono (e sua consequente inserção no ainda incipiente mercado de carbono) – além de fortalecer a economia, a segurança hídrica e alimentar da maioria dos brasileiros.
Preservar a Mata Atlântica é preservar a vida, a economia e a sobrevivência de milhares de espécies, inclusive a nossa.
Por Daniela Vianna, jornalista, doutora em Ciências Ambientais (PROCAM), pós-doutoranda do Saúde Planetária Brasil (IEA-USP) e colaboradora do ClimaInfo
ClimaInfo, 31 de maio de 2023.
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