Chuvas extremas que ceifam vidas e sonhos são associadas à emergência climática e impactam, prioritariamente, populações vulnerabilizadas; ações preventivas são urgentes, dizem especialistas.
“Meu Deus do céu! Sai, sai daí, sai daí!”, grita uma mulher (não identificada), antes de cair no choro, tentando alertar outros moradores de Manaus para se afastarem do perigo, enquanto observava, perplexa, uma casa inteira de madeira sendo arrastada pela enxurrada e destruída ao bater no alambrado de uma ponte, no último dia 25 de março.
O vídeo, de autoria desconhecida, foi publicado pelo jornalista Jeso Carneiro no Instagram e replicado em diversas redes. É mais um retrato de uma situação que se espalha pelo país. Chuvas torrenciais e extremas que pegam moradores desprevenidos, espalhando pânico e angústia; destruição e mortes; levando embora vidas, casas, pertences, memórias e sonhos.
Só neste ano, no Brasil, chuvas torrenciais e/ou extremas já aconteceram em Maranhão, Tocantins, Ceará, Acre, Amazonas, Pará, Rondônia, e, no Carnaval, no Litoral Norte de São Paulo, Nesta última 65 pessoas perderam a vida. Quem sobrevive, nunca mais enxerga as nuvens do mesmo jeito. Neste mês, em Rio Branco, 69 mil pessoas foram afetadas com a enchente do Rio Acre (e igarapés), que subiu 17,72 metros e atingiu 90 bairros da capital acreana. Mil famílias ficaram desabrigadas, e outras seis mil pessoas, desalojadas.
O ano passado foi considerado o mais letal em termos de mortes ocasionadas por chuvas torrenciais no país. Foram 457 vítimas fatais até maio de 2022, representando mais de 25% das 1.756 mortes registradas por excesso de chuvas nos últimos dez anos, de acordo com levantamento da Confederação Nacional de Municípios realizado entre janeiro de 2013 e 31 de maio de 2022. Em junho, esse número já havia ultrapassado 500 mortes. E ainda não estavam computadas as vítimas das chuvas torrenciais ocorridas no final do ano no Rio de Janeiro, em Santa Catarina e no Paraná, só para citar três exemplos.
A pergunta que não quer calar é: isso poderia ter sido evitado? A resposta é sim, e também não.
Não porque esses eventos extremos vão se agravar ainda mais em diversas partes do Brasil e do mundo. A ação humana, por meio da queima dos combustíveis fósseis desde a Revolução Industrial, já contribuiu para o aquecimento da temperatura média do planeta em 1,1oC. O último Relatório Síntese do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), lançado em março, é taxativo: teremos, até 2030, de reduzir à metade as emissões de gases de efeito estufa decorrentes do desmatamento e da queima de combustíveis fósseis se quisermos manter o aumento médio da temperatura global em 1,5oC. Caso contrário, alertam os cientistas, com alto grau de confiabilidade, tais eventos extremos – inundações, deslizamentos, tornados e vendavais, secas extremas, ondas de frio e calor, incêndios, entre outros – só vão piorar em intensidade e frequência. O problema é que estamos na direção oposta, acelerando em direção ao muro. As emissões aumentam ano a ano, ao invés de serem reduzidas, como mostra o gráfico abaixo, da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA, na sigla em inglês), dos EUA.
A resposta à pergunta também é sim, na medida em que políticas efetivas e preventivas de gestão de riscos, contingenciamento de desastres, ampliação da percepção de riscos e redução da vulnerabilidade das populações diante dos eventos climáticos extremos podem salvar vidas, reduzir o número de desalojados e diminuir os impactos da destruição, como ressaltou o geólogo Fernando Nogueira, nesta entrevista concedida ao #ClimaSemFake.
Ele defende uma prática antecipatória de emergência e proteção em Defesa Civil, com o resgate e a atualização de um instrumento chamado Plano Preventivo de Defesa Civil (PPDC), definido em 1988 com o objetivo de evitar a ocorrência de mortes a partir da remoção preventiva e temporária da população que ocupa áreas de risco, antes que deslizamentos de terras atinjam suas moradias.
“Não é a chuva o desastre, ela é apenas o que deflagra o desastre”, afirma o climatologista e meteorologista José Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), órgão vinculado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).
O Centro monitora 1.038 dos 5.568 municípios brasileiros, e vai ampliar o monitoramento para dois mil. A previsão de risco de alerta de desastres elaborada pelo Cemaden é informada às Defesas Civis dos Estados, que têm por atribuição informar os municípios. Marengo também defende a necessidade de ações preventivas e sistemas de alerta eficazes para evitar novas tragédias.
Como um desafio adicional, o Brasil não possui uma cultura de prevenção e percepção de riscos de desastres bem definidos, segundo Marengo. Diferentemente dos Estados Unidos, por exemplo, que tem um histórico de tornados e furacões, ou do Peru e do Japão, que, devido à localização geográfica, são historicamente impactados por terremotos. Os três países possuem planos de evacuação e proteção que são seguidos à risca a cada alerta de novos eventos.
Existe também um componente ainda mais nefasto envolvendo essa história no Brasil, e o nome disso é racismo ambiental, como analisam as pesquisadoras Ana Sanches, da USP e do Instituto Pólis, e a economista Rita Maria Passos.
As vítimas das chuvas extremas têm cor, raça, gênero e classe social. Fazem parte de comunidades inteiras que habitam áreas consideradas de risco, seja por falta de opção, pois foram empurradas para lá devido à especulação imobiliária e à falta de recursos para ocupar regiões centrais e seguras das cidades, seja por estarem conectadas histórica, cultural e emocionalmente a territórios que foram esquecidos, negligenciados, marginalizados ou invisibilizados nas políticas de infraestrutura e logística por parte dos poderes públicos. Essas pessoas, as que menos contribuíram para o aquecimento global, são as que mais sentem os seus efeitos e impactos.
O caso São Sebastião: o descaso veio antes e seguiu depois
Se o PPDC estivesse em pleno vigor, ou se o Plano Nacional de Adaptação à Mudança Climática, elaborado em 2016, tivesse saído do papel, as famílias das 65 vítimas da tragédia de São Sebastião, no Litoral Norte paulista, ocorrida entre os dias 18 e 19 de fevereiro, durante o Carnaval, poderiam não estar em luto, chorando por suas perdas.
Tampouco as centenas de pessoas que ainda estão hoje desabrigadas ou desalojadas de suas casas, vivendo provisoriamente em escolas, na casa de parentes e amigos ou em pousadas pagas com recursos de doações, estariam lidando com incertezas e buscando resgatar condições mínimas de sobrevivência para retomar suas vidas.
Se políticas efetivas de evacuação estivessem em curso, Sabrina Moraes, cofundadora do Coletivo Caiçara de São Sebastião, Ilhabela e Caraguatatuba, não contaria a história de uma família composta por mãe, pai e uma criança de três anos que morreu abraçada, no bairro Pantanal, em Juquehy, enquanto dormia. Nem relataria que a mãe dela, de 63 anos, ficou com água pelo pescoço na mesma região, tentando salvar outras pessoas e seus pertences. Sabrina havia passado a noite do dia 18 em Boiçucanga e teve de atravessar de barco, no dia 19, para chegar em Juquehy. “Encontrei um cenário de guerra, era um caos”, contou.
Eram 19 horas do dia 18 de fevereiro quando as chuvas começaram. Dois dias antes, o Cemaden já havia emitido um alerta para a região de que um volume grande de chuvas, da ordem de 200 milímetros em 24 horas, era previsto para o litoral norte paulista. Além dos alertas meteorológicos, foram emitidos também alertas de previsão de risco de desastres, que começaram como moderados, no dia 17 de fevereiro, passando a alto e muito altos entre os dias 18 e 19.
Foi bem pior do que o esperado. Algo nunca registrado no Brasil. Foram 683 milímetros de chuva em 15 horas, segundo o climatologista José Marengo. Mais de 101 mil piscinas olímpicas de água despejadas sobre o litoral norte em menos de 24 horas, como mostra o ClimaInfo. De acordo com Marengo, os deslizamentos de terra nas encostas começaram por volta das duas horas da madrugada. “Não havia rotas de escape, nem sirenes de alerta; as pessoas não sabiam para onde ir”, lamentou, reforçando que o Brasil precisa refinar o seu processo de alertas e agir antecipadamente. “Não existem supercomputadores no mundo capazes de prever a que horas [a chuva vai cair], o local preciso e o volume. Porém, emitimos alertas dos riscos […], a remoção precisa ser feita com horas de antecedência, durante o dia.”
“A tragédia poderia ter sido evitada; foi um crime”, acusou a líder caiçara Sabrina Moraes, que também integra um coletivo popular em defesa das vítimas. Segundo ela, “por ser Carnaval, a Defesa Civil Municipal [que possui quatro agentes] foi informada, mas não alertou as comunidades sobre os riscos”. Além disso, ela diz que a questão fundiária – para a construção de moradias populares para alojar famílias que hoje moram em áreas de risco – se arrasta sem solução desde 1990, em São Sebastião.
Para além da prevenção ou do socorro emergencial às vítimas nos dias após a tragédia – quando a própria comunidade, a imprensa, o poder público, as ONGs e a sociedade em geral se mobilizam em solidariedade –, é importante que se diga que as consequências, para os atingidos, estendem seus tentáculos pelos meses subsequentes.
Centenas de moradores seguem sofrendo os impactos diretos e indiretos, bem como lamentando a falta de olhar, atenção e real escuta para as pessoas vulnerabilizadas. Muitas, sem informações ou laudos técnicos, voltaram para suas moradias. Outros, como a artesã Marisia Moraes, 63 anos, veem o seu ganha-pão destruído. Caiçara, ela extraía palha de taboa para produzir tapetes, cestos e outras peças de artesanato, replicando um conhecimento passado por gerações em sua família. O local de onde tirava matéria-prima, hoje, está coberto de barro e lama, como relatou ao UOL.
Em março, um mês após o ocorrido, o prefeito Felipe Augusto (PSDB), com apoio do governo do Estado, anunciou a transferência de parte das vítimas da Vila do Sahy para 300 apartamentos de um conjunto habitacional do CDHU em Bertioga. Anunciou, também, a construção de 500 moradias na Baleia Verde, na Costa Sul do município de São Sebastião, contrariando o interesse de boa parte das vítimas.
“Querem alterar o plano diretor para promover a verticalização em São Sebastião, isso não é possível. A Baleia Verde é um charco, e querem construir lá. Continuamos sem escuta”, criticou Sabrina, denunciando que as decisões são adotadas para atender aos interesses tanto da especulação imobiliária quanto da exploração de petróleo e gás [a Transpetro possui uma série de dutos na região], sem considerar as comunidades.
Diante da falta de diálogo e de informações, bem como da imposição de medidas impostas de cima para baixo, a Defensoria Pública foi acionada para assegurar o direito das vítimas junto ao poder público, antes de dar início a um processo de judicialização dos casos que não forem resolvidos em consensos e acordos. Os moradores, articulados no movimento popular “União dos atingidos pela tragédia crime de São Sebastião”, organizam um protesto para o próximo dia 19, quando a tragédia completa dois meses.
No último dia 5 de abril, em conversa com moradores que estão se articulando em um coletivo popular, os defensores asseguraram que uma das principais reivindicações – vistorias e a emissão de laudos técnicos individuais para cada moradia, por parte da Coordenadoria Municipal de Defesa Civil – será atendida. As medidas de auxílio financeiro e atendimento habitacional deverão ser adotadas seguindo a classificação de áreas realizada pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e pelo Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA) como ID (Interdição Definitiva), ITP (Interdição Temporária Preventiva) e SMI (Setor de Monitoramento Intensivo).
As resoluções, entretanto, não interferem em estruturas enraizadas de desigualdades e opressão e impactos ambientais, agravando ainda mais a injustiça climática, como revela o livro “Quem precisa de justiça climática no Brasil”, lançado pelo GT de Gênero e Clima do Observatório do Clima.
“[No Litoral Norte], vemos uma cidade fantasma, com casas de veraneio vazias, enquanto a população que reside, trabalha e estuda na região fica nas encostas do morro. Além disso, as obras de duplicação da [rodovia] Tamoios e a exploração de petróleo e gás abalou muito as estruturas [dos morros] da região”, alerta Ana Sanches, pesquisadora da USP e consultora do Instituto Pólis. Segundo ela, a especulação imobiliária é fortíssima na região, e o zoneamento está sendo alterado para atender a interesses de poucos, em detrimento da maioria.
O caso Recife: comunidades invisibilizadas na urbanidade
“Começou a chover forte agora”, disse, apreensiva, Sarah Marques, educadora popular e cofundadora do Coletivo Carangueijo Tabaiares, do Recife, quando foi surpreendida pela chuva intensa enquanto dava entrevista para o ClimaInfo, no último dia 4 de abril. Mãe de um casal de gêmeos, hoje com 13 anos, Sarah mora a dois metros de um canal que passa pela zona Oeste da capital pernambucana e desagua no rio Capiberibe. Ela nunca mais olhou para o céu da mesma forma. Não é para menos.
A comunidade ribeirinha e pesqueira onde mora, hoje com seis mil famílias, já coleciona memórias dolorosas e prejuízos de duas tragédias decorrentes das enchentes ocorridas em maio de 2022 e, mais recentemente, em março deste ano. “Ainda estávamos nos recuperando do ano passado, e veio outra”, lamentou, “mas ainda estamos vivos”.
Sarah afirma que a comunidade, defensora das águas, está cercada pela especulação imobiliária e pelo adensamento de prédios ao redor, o que, segundo ela, tem agravado o escoamento das águas da chuva. “Aqui sempre encheu, mas a água ia para o rio. Piorou muito nos últimos anos”, disse. A líder ribeirinha lamenta que a comunidade não seja vista em sua potencialidade de proteção das águas e denuncia a invisibilidade e a falta de investimentos, por parte do poder público, para barrar o processo de gentrificação e integrar a ZEIS (Zona Especial de Interesse Social) às políticas de infraestrutura da cidade.
“Quem passa pela avenida não nos enxerga”, desabafou. “Nós, povos originários e tradicionais, vemos a água como benção, nós somos a natureza. […] Agora, vemos o nosso território tomado pela urbanização desordenada do nosso canal, que não foi limpo. Continuam sem enxergar a gente como parte da solução”, conta. “Querem que a gente saia daqui para sete quilômetros de distância. O problema não é a chuva, é a falta de estrutura. Mais uma vez temos que nos adaptar para não morrer?”, questiona, dizendo que os moradores são recebem olhares de deboche, por parte dos técnicos, quando dizem que não querem deixar o local.
“Essa falta de estrutura também é uma forma de expulsão. Temos medo de sair e não conseguir voltar”, disse ela. “Sabemos a cor, a classe, a cara de quem vai morrer. Mas, quando vemos os governantes e políticos, eles têm a cara e a cor das grandes imobiliárias. […] Não fazem nada”, desabafou.
Entre a cruz e a espada, entre a luta para permanecer no território e ganhar visibilidade e respeito por parte do poder público, ou ceder à pressão e sair das áreas, comunidades como a de Sarah, no Recife, a de Sabrina, em São Sebastião, e tantas outras espalhadas pelo Brasil seguem resistindo para sobreviver e se organizam em coletivos populares para buscar forças, apoio, visibilidade e voz. A questão de adaptação diante da crise climática – enquanto os esforços para reduzir as emissões se mostram insuficientes – exigirá um debate amplo e inclusivo, com justiça climática. Caso contrário, desastres continuarão sendo estampados nas páginas dos jornais, trazendo dor e sofrimento para uns, e alívio por não ser com eles (por enquanto) para outros.
Este é o primeiro de uma série de conteúdos sobre Adaptação que será produzida pelo ClimaInfo para ampliar esse debate.
(*) Daniela Vianna é jornalista, doutora em Ciências Ambientais (PROCAM), colaboradora do ClimaInfo e pós-doutoranda do Saúde Planetária Brasil, ligado ao Instituto de Estudos Avançados da USP.
Revisão técnica: Délcio Rodrigues
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