“Nunca tinha visto nada parecido [sobre marco temporal]. Talvez já estivesse circulando como uma ideia astuta, mas não na época da Constituinte. O marco temporal foi inventado [em 2009, para a demarcação da Terra Indígena Raposa do Sol, em Roraima]. O Supremo [Tribunal Federal] declarou que não havia marco temporal para todas as Terras Indígenas. Em nenhuma legislação do mundo um Povo que foi retirado à força, foi expulso de seu território, não tem direito de retornar.”
A fala da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, que acompanhou os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988 na construção dos artigos sobre os Povos Indígenas, comprova o absurdo que é o marco temporal. Em entrevista à Agência Pública – dada antes da retomada do julgamento no STF, na 4ª feira (7/6) –, ela deixa claro que a tese é uma invenção, já rechaçada pelo próprio Supremo, mas conveniente para quem quer tomar Terras Indígenas, como setores do agronegócio.
A história da Constituição de 1988 e o posicionamento anterior do STF, porém, não foram suficientes para o ministro André Mendonça. Após o voto do ministro Alexandre de Moraes contrário à tese – embora tenha proposto uma inexplicável indenização a invasores de territórios indígenas, informa a CNN –, Mendonça pediu vistas. Com isso, travou mais uma vez o julgamento da ação, relacionada ao Povo Xokleng e à Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, de Santa Catarina, mas que irá definir o futuro de todas as TIs do país, lembra o Sumaúma. O placar contra o marco temporal está 2×1.
O adiamento do desfecho dividiu lideranças indígenas que acompanharam o julgamento em Brasília. Se por um lado o pedido de vistas frustrou por estender a angústia, por outro aumentou a esperança de que o marco temporal será sepultado em definitivo pelo STF, aponta o Brasil de Fato.
Já a bancada ruralista, obviamente, comemorou o adiamento, conta a Veja. O julgamento afetaria a tramitação do projeto de lei 490, aprovado na Câmara, e que agora está no Senado sob o nº 2903, que estabelece não somente o marco temporal, mas um pacote de maldades contra os Povos Indígenas. Mendonça agora tem 90 dias para se posicionar sobre o processo. Como esse prazo não inclui o recesso do Judiciário, em julho, o ministro terá até outubro para se manifestar, lembram Correio Braziliense e Terra. O prazo pode impedir a ministra Rosa Weber de votar, já que terá de se aposentar em 2 de outubro.
Weber visitou Terras Indígenas em abril e acredita-se que seu voto será contrário à tese. Após o pedido de Mendonça, a ministra fez um apelo para que o processo seja devolvido a tempo, ressalta a Carta Capital. “Só espero, e tenho certeza de que vai acontecer, que eu tenha condições de votar, porque tenho uma limitação temporal”, disse ela.
Uma nota técnica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) mostra o imenso estrago que o marco temporal pode provocar na cobertura vegetal brasileira, explica a Carta Capital: caso a tese se estabeleça, pode levar ao desmatamento de 23 a 55 milhões de hectares de vegetação natural, além da degradação, correspondente à emissão de 7,6 a 18,7 bilhões de toneladas de dióxido de carbono, o que equivale a um período de 5 e 14 anos das emissões totais do Brasil.
O marco temporal ainda pode inviabilizar a demarcação de 114 Terras Indígenas em 185 municípios, mostra o Estadão. Ao contrário dos discursos falaciosos de parlamentares de que os indígenas “já têm terras demais”, as TIs em processos avançados de homologação ocupam só 3% das áreas desses municípios.
Ainda que a situação continue delicada, a luta indígena ganhou um apoio de peso. Em entrevista à Folha, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que visita o Brasil nesta segunda (12/6), lembrou que os indígenas “desempenham papel central na preservação e no uso sustentável da floresta e no desenvolvimento do potencial de superpotência verde do Brasil”. O meio ambiente está no centro das discussões do acordo UE-Mercosul, hoje travado.
O adiamento do julgamento do marco temporal foi amplamente noticiado, com matérias em Rede Brasil Atual, BNC Amazonas, g1, Poder 360, Terra, Conjur, Estado de Minas, Metrópoles, Folha, O Globo, Veja, CNN e Agência Brasil.
ClimaInfo, 12 de junho de 2023.
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