Gás fóssil é fonte renovável? Para os parlamentares, parece que sim

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Martin Adams / Unsplash

Somente uma visão que ignora a responsabilidade dos combustíveis fósseis pelas mudanças climáticas explica benefícios ao gás nos projetos de eólicas offshore e transição energética

Reza a lenda que tem coisas que só existem ou acontecem no Brasil. Uma delas é a deliciosa jabuticaba, fruta nativa da Mata Atlântica. Outra, nada agradável, é o “jabuti” – não o simpático animal, mas a estratégia de deputados e senadores de inserirem em projetos de lei temas que nada tem a ver com a motivação original. Agora, os parlamentares brasileiros estão prestes a inaugurar uma nova exclusividade nacional: considerar gás fóssil como fonte renovável de energia.

Esquisito? Muito. Mas é o que está acontecendo em diversos projetos de lei que estão na Câmara e no Senado que deveriam tratar de energia renovável, com regulamentações e estímulos fiscais. Mas nos quais o lobby dos combustíveis fósseis está tentando garantir benefícios para gás e também para carvão.

A última tentativa de “limpar” uma energia suja como o gás fóssil está acontecendo no Programa de Aceleração da Transição Energética – PATEN e na Política Nacional de Transição Energética (PONTE). Na semana passada, enquanto deputados aprovavam o projeto do Combustível do Futuro, a relatora do PATEN na casa, deputada Marussa Boldrin (MDB-GO), ampliou no seu parecer a lista de empreendimentos que podem ser beneficiados pelo programa. E nesse rol, incluiu produção e expansão do gás fóssil. 

Como se trata não apenas de energia renovável, mas também de dinheiro, a espinha dorsal financeira do PATEN/PONTE é o “Fundo Verde”. Administrado pelo BNDES, ele visa a garantir o risco de financiamento para projetos sustentáveis voltados à infraestrutura, pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica. E é nessa garantia financeira que o lobby dos combustíveis fósseis está de olho. Com o apoio da “bancada do gás fóssil”, que reúne deputados e senadores ligados a empresas do setor.

Mas o risco de meter gás fóssil no lugar de energia renovável não está somente no PATEN. No ano passado, os deputados aprovaram o projeto que regulamenta as eólicas offshore – uma fonte renovável de energia. E colocaram no texto benefícios à produção de eletricidade à base de gás e também de carvão. Duas fontes sujas e caras que nada tem a ver com geração elétrica à base de ventos, seja em terra ou no mar. E que respondem pelas maiores emissões de gases de efeito estufa do setor elétrico em todo o planeta. Como já dissemos, não é jabuti, é dragão.

Essa excrescência está para ser votada no Senado a qualquer momento. Há a expectativa de que os senadores derrubem essa inclusão, atendendo a pleitos dos consumidores, que já mostraram o quanto essas e outras benesses podem encarecer a conta de luz em R$ 28 bilhões por ano. Mas tudo pode acontecer, ainda mais por causa das delicadas relações entre o Congresso e o Executivo.

Vale lembrar também que o gás fóssil também foi considerado no projeto que regulamenta a produção de hidrogênio no país, que também passará agora pelo crivo dos senadores. A ideia original era tratar do “hidrogênio verde”, produzido a partir de fontes renováveis de energia. Mas o lobby dos combustíveis fósseis conseguiu mudar o nome para “hidrogênio de baixo carbono”. O que cria a possibilidade de gerar parte do combustível com energia suja, produzida com gás fóssil.

Com a necessidade urgente de eliminar os combustíveis fósseis da matriz energética global, a indústria petrolífera tenta enganar como pode. Uma dessas estratégias é insistir no gás fóssil como “combustível da transição energética”. É, por exemplo, a atual aposta da Shell, que diminuiu suas metas climáticas para encher o mundo de gás fóssil.

Queimar ainda mais um combustível fóssil, com grandes emissões de carbono, para tentar conter as mudanças climáticas que esse mesmo combustível agrava. Tão ruim quanto isso somente a iniciativa de uma associação de carvão mineral nacional que tirou o combustível fóssil de seu nome e incluiu “carbono sustentável”. Como pode?

Narrativas à parte, o que importa agora é escancarar quem é a “bancada do gás fóssil” no Congresso. Não é mais possível que deputados e senadores façam coro ao lobby dos combustíveis fósseis, usando para isso projetos de lei voltados às fontes renováveis. 

Somente uma visão negacionista de que a crise climática é causada majoritariamente pela queima dos combustíveis fósseis explica esse apoio. E não se pode mais negar o óbvio. Pesquisas mostram que os eleitores já perceberam que suas vidas estão em risco pelos eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes e intensos. Parlamentares que ignorarem esse fato poderão pagar caro – nas urnas.

 

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Por Alexandre Gaspari, Jornalista no ClimaInfo.

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ClimaInfo, 19 de março de 2024.

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