Como seriam as coisas se a humanidade tratasse a mudança climática como uma emergência real?

Fotografia de Jason Hickel

Se aceitamos os fatos da mudança climática, também temos que aceitar as mudanças radicais necessárias para enfrentá-la

Jason Hickel*

Agora que baixou a poeira levantada pela COP26, é possível ver que os seus resultados não parecem bons. Apesar da enxurrada de promessas caça-manchete, os compromissos nacionais não nos aproximaram da meta do Acordo de Paris que busca conter o aquecimento global em 1,5 graus centígrados. De acordo com o Climate Action Tracker, 73% das promessas net zero existentes são fracas e inadequadas – são “gasto de saliva ao invés de ação climática”. Além disso, seguimos com uma lacuna enorme entre as promessas, que são fáceis de fazer, e as políticas públicas públicas reais, que são tudo o que realmente conta. Os governos podem se comprometer o quanto quiserem, mas o que precisamos é de ação. Neste momento, as políticas púbicas governamentais existentes levariam a um aquecimento global de 2,7 graus nas próximas décadas.

O que acontecerá ao nosso mundo nestas condições? À medida que as temperaturas se aproximam dos 3 graus, é provável que entre 30 e 50% das espécies hoje existentes sejam dizimadas. Mais de 1,5 bilhões de pessoas serão deslocadas de suas regiões de origem. As colheitas das culturas agrícolas básicas enfrentarão um grande declínio, provocando rupturas duradouras no fornecimento de alimentos em todo o mundo. Grande parte dos trópicos se tornará inabitável para os seres humanos. Um mundo assim não é compatível com a civilização tal como a conhecemos. O status quo será o de uma marcha da morte. Nossos governos estão nos falhando – arriscando toda a vida na Terra.

Tudo isso faz nos faz perguntar: como seria se tratássemos a crise climática como uma emergência real? O que seria necessário para manter o aquecimento global a não mais do que 1,5 graus? A intervenção mais importante é aquela que até agora nenhum governo se mostrou disposto: limitar o uso de combustíveis fósseis e reduzi-lo em um cronograma anual vinculante, até que a indústria fóssil seja desmantelada em sua maior parte até meados do século. E é isso. Esta é a única maneira segura de impedir a ruptura climática. Se quisermos uma ação real, isto deve estar no topo de nossa agenda.

A rapidez com que isso precisa acontecer depende do país. Os países ricos são responsáveis pela esmagadora maioria das emissões excedentes de carbono que estão causando a ruptura climática. Eles também têm níveis de uso de energia vastamente superiores aos de outros países, e muito superiores ao que é necessário para atender às necessidades humanas, com a maior parte do excedente sendo desviado para atender à expansão corporativa e ao consumo de elite. O carbono zero até 2050 deve ser uma meta média global. Uma abordagem justa e equitativa exigiria que os países ricos eliminassem a maioria do uso de combustíveis fósseis até 2030, ou 2035 no mais tardar, para dar aos países mais pobres algum tempo para a transição.

Esta abordagem pode ser entendida, simultaneamente, como dramática e óbvia. Os combustíveis fósseis são responsáveis por três quartos das emissões de gases de efeito estufa, e seu consumo tem que ser eliminado. Uma campanha, endossada por 100 ganhadores do Prêmio Nobel e vários milhares de cientistas, pede um Tratado de Não Proliferação de Combustíveis Fósseis para fazer exatamente isso: um acordo internacional para acabar com os combustíveis fósseis em um cronograma justo e legalmente vinculante. Por que, então, os líderes políticos não estão dispostos a dar o passo necessário?

Em parte porque são covardes demais para enfrentar as empresas de combustíveis fósseis e seu exército de lobistas, que lutam com unhas e dentes para evitar até mesmo as ameaças mais moderadas aos seus lucros. E em parte porque os líderes foram comprados pela narrativa – depois de muita pressão exercida por milionários e outros que têm interesse em manter o status quo, incluindo as próprias empresas de combustíveis fósseis – segundo a qual tecnologias serão desenvolvidas para sugar carbono suficiente da atmosfera ao ponto de podermos continuar queimando combustíveis fósseis durante o restante do século. Esta é a bobagem que justifica as promessas do “zero-líquido”. É claro que a remoção do carbono da atmosfera terá um papel a desempenhar, mas os cientistas têm advertido, repetidamente, que esta é inviável em escala e altamente arriscada: se por qualquer razão a abordagem falhar, estaremos presos a um caminho que nos levará a altas temperaturas, do qual será impossível escapar.

A parte complicada é que uma vez que aceitamos esta realidade, temos que encarar o fato da redução da queima dos combustíveis fósseis com rapidez suficiente capaz de evitar a catástrofe implica mudança fundamental na economia. E é isso mesmo que quero dizer, fundamental.

Pense sobre isso. Imagine que no próximo ano sejamos capazes de reduzir em 10% o nosso uso de combustíveis fósseis. E, no ano seguinte, reduzirmos mais 10%. E assim por diante, no ano seguinte, e no próximo etc. Mesmo que coloquemos todas as nossas fichas na construção de uma nova capacidade de geração de energia renovável e na melhoria da eficiência energética – o que, claro, tem que ser feito fazer com urgência – não haverá como cobrir toda a lacuna. A verdade é que os países ricos terão que se contentar com menos energia. Muito menos.

Como podemos administrar tal cenário? Bem, na economia existente, esta velocidade de redução seria um caos total. O preço da energia dispararia. As pessoas seriam incapazes de pagar bens essenciais. Os negócios entrariam em colapso. O desemprego subiria. O capitalismo – que depende do crescimento perpétuo apenas para se manter à tona – é estruturalmente incapaz de sustentar tal transição.

Felizmente, há uma outra maneira. É possível manter o aquecimento global abaixo de 1,5 graus, mas isso exige passarmos todos para o modo de emergência. E exige que sejamos honestos conosco mesmos sobre a realidade do que tem que mudar. Sem contos de fadas.

Primeiro, temos que nacionalizar a indústria de combustíveis fósseis e as empresas de energia, colocando-as sob controle público, assim como qualquer outro serviço essencial. Isto nos permitiria reduzir a produção e o uso de combustíveis fósseis de acordo com um cronograma baseado na ciência, sem ter que lutar constantemente contra o capital fóssil e sua propaganda. Também nos permitirá proteger do caos dos preços e redirecionar a energia para onde esta é mais necessária, a manutenção do funcionamento dos serviços essenciais.

Ao mesmo tempo, precisamos reduzir a importância das partes menos necessárias da economia, a fim de reduzir o excesso de demanda de energia: SUVs, jatos particulares, viagens aéreas comerciais, carne bovina industrial, fast-fashion, publicidade, obsolescência programada, o complexo industrial militar e assim por diante. Precisamos focar a economia no que é necessário para o bem-estar humano e a estabilidade ecológica, ao invés de manter o foco nos lucros corporativos e no consumo de elite.

Em segundo lugar, precisamos proteger as pessoas, estabelecendo uma base social firme – uma garantia social. Precisamos garantir saúde pública universal, moradia, educação, transporte, água, energia e internet para que todos tenham acesso aos recursos de que necessitam para viver bem. E com a produção industrial desnecessária abrandada, precisaremos encurtar a semana de trabalho para compartilhar mais uniformemente a necessidade de mão-de-obra, e introduzir uma garantia climática de emprego para assegurar que todos tenham acesso a uma vida digna – com uma renda básica para aqueles que não podem trabalhar ou que optam por não o fazer. Este é o arroz com feijão de uma transição justa.

Como se pagaria pela garantia social? Qualquer governo que tenha soberania monetária pode financiá-la por meio da emissão de moeda; pense no quantitative easing do pós-crise de 2008, mas desta vez para as pessoas e para o planeta. Isto é verdade para todos os países de alta renda, embora para os países da União Europeia isto tenha que ser feito de forma coordenada. O crucial é que, para evitarmos qualquer risco de inflação, temos também de reduzir o poder de compra dos ricos. E isso nos leva ao próximo ponto-chave.

Em terceiro lugar, precisamos taxar os ricos até a extinção. Como Thomas Piketty mostrou, cortar o poder de compra dos ricos é a maneira mais poderosa de reduzir o uso de energia em excesso e as emissões de carbono. Isto pode parecer radical, mas pense nisso: é irracional – e perigoso – continuar apoiando uma classe que consome demais no meio de uma emergência climática. Não podemos permitir que esta classe se apropriem de energia tão vastamente além do que qualquer um poderia razoavelmente precisar.

Como podemos fazer isso? Uma abordagem seria introduzir um imposto sobre a riqueza. Tornar as coisas difíceis o suficiente para que os ricos sejam incentivados a vender os ativos excedentes às necessidades reais. Podemos também introduzir uma política de renda máxima, de modo que qualquer coisa acima de um determinado limite enfrente uma taxa de imposto de 100%. Além de reduzir o consumo excessivo no topo, esta abordagem reduzirá a desigualdade e eliminará o poder oligárquico que polui nossa política.

Em quarto lugar, precisamos de uma mobilização pública maciça para atingir nossos objetivos ecológicos. Precisamos construir toda uma nova capacidade de geração de energia renovável, expandir o transporte público, isolar termicamente os edifícios e regenerar os ecossistemas. Isto requer investimentos públicos, mas também requer mão-de-obra. Há muito trabalho a ser feito e as coisas não se farão por si sós. É aqui que entra a garantia climática do trabalho. A garantia de emprego assegurará a qualquer pessoa que queira o treino necessário para participar dos projetos coletivos mais importantes de nossa geração, fazendo um trabalho digno, socialmente necessário e com um salário condizente.

Finalmente, precisamos de um forte compromisso com as reparações climáticas. Os países ricos colonizaram a atmosfera para seu próprio enriquecimento, enquanto seguem infligindo a maior parte dos custos ao Sul global. Este é um ato de roubo – roubo dos bens comuns atmosféricos dos quais todos nós dependemos – e precisa ser reparado. Precisamos apoiar nossas irmãs e irmãos no Sul que já suportam o peso esmagador de uma catástrofe que pouco fizeram para criar. Isto deve incluir uma política de cancelamento da dívida, para que os países mais pobres não sejam mais obrigados a dedicar seus recursos limitados ao atendimento das demandas dos grandes bancos e possam, ao invés disso, concentrarem-se no atendimento das necessidades das pessoas. E as tecnologias renováveis deveriam ser transferidas gratuitamente para os países que não podem facilmente pagá-las, com renúncia a patentes se necessário, para facilitar a transição energética mais rápida possível em todo o mundo.

Como seria um mundo assim? Nosso cinismo e medo derreter-se-iam em esperança e solidariedade. Sentiríamos a emoção e a camaradagem de fazer parte de algo grande, algo transformador, algo coletivo. Haveria muito menos produção de mercadorias desnecessárias, e muito menos empregos ruins. Nossa sociedade seria mais igualitária e a pobreza seria uma coisa do passado. Nossa economia seria organizada em torno das necessidades humanas e da resiliência, e não em torno de um acúmulo infinito de capital. E o mais importante, as emissões cairiam rapidamente, ano após ano, em uma ruptura dramática com o fracasso das últimas décadas. A chaga que produzimos na atmosfera de nosso planeta começaria a cicatrizar.

É improvável, entretanto, que qualquer governo atual esteja disposto a tomar as medidas necessárias sozinho, por medo de eventuais desvantagens políticas e econômicas. Alguns poucos países progressistas poderiam talvez seguir tal caminho – e ao fazer isso iluminariam o caminho à frente. Mas, finalmente, precisamos de uma ação coordenada, e é por isso que o Tratado de Não Proliferação de Combustíveis Fósseis é tão importante. Sabemos que a única maneira dos governos se livrarem das armas nucleares é que todos concordem em fazê-lo juntos. Assim é também com os combustíveis fósseis.

É assim que evitaremos a ruptura climática. Mas isso não vai acontecer por si só. Pedir educadamente que a classe dirigente aja não vai resolver. O processo exigirá uma luta extraordinária contra aqueles que se beneficiam tão prodigiosamente do status quo – como todos os movimentos que já mudaram o mundo, do movimento de Direitos Civis ao movimento anticolonial. Requer um trabalho árduo de organização comunitária, construindo solidariedades de parte a parte suficientemente fortes para resistir a ataques políticos. Requer alianças forjadas entre o movimento ambientalista e o movimento trabalhista, e para além das fronteiras nacionais, o suficiente para realizar uma ação de greve coordenada. Esta década é o fio condutor da história. Não podemos nos dar ao luxo de ficar de braços cruzados e esperar para ver o que acontece. Temos que capturar o poder político onde pudermos, ou forçar os titulares a mudar de rumo.

* Jason Hickel, antropólogo econômico e autor de The Divide e Less is more, escreve regularmente para o jornal britânico The Guardian e a revista Foreign Policy sobre desigualdade global e ecologia política.

Artigo publicado orginalmente na revista Current Affairs em 15 de novembro de 2021.