Tragédia no litoral, TI Yanomami e a branquitude brasileira

tragédia no litoral SP
Rovena Rosa / Agência Brasil

Por Tatiane Matheus*

Um dos vídeos mais compartilhados nas redes sociais do ClimaInfo recentemente foi: “E se fossem crianças brancas e ricas mortas? Ao invés das yanomanis?“. Apesar da comoção contra esse genocídio, uma conhecida atriz brasileira ironizou, colocando em dúvida os casos de desnutrição severa envolvendo essa comunidade indígena. Será que ela falaria isso se os olhasse como alguém semelhante a ela? Enquanto isso, a Folha havia publicado o artigo “Chove mais no Jacarezinho”, no qual o advogado Thiago Amparo conclui que o racismo ambiental nos desafia a não somente perguntar se vai chover hoje, mas sobre a cabeça de quem.

Poucos dias depois, durante o Carnaval, o litoral norte paulista sofreu com fortes chuvas nunca antes vivenciadas na região. O extremo climático deixou dezenas de mortos, feridos e desaparecidos. “O clima explica parte da tragédia no litoral norte de São Paulo. As chuvas atingem ricos e pobres, mas são os mais vulneráveis que costumam perder tudo e morrer por terem sido empurrados pela especulação imobiliária para locais perigosos”, refletiu o jornalista Leandro Sakamoto em um tweet.  

A Vila do Sahy, em São Sebastião, foi um dos lugares mais impactados pelo extremo climático. A roteirista Ana Reber – entrevistada pela Folha –  estava hospedada num condomínio que ficava perto do morro onde houve deslizamento severo. A turista contou que, apesar de algumas casas do local estarem sendo usadas (com a permissão dos proprietários) como abrigo, pareceu-lhe obsceno no meio de um “cenário de guerra” com “muito morto” , pessoas indo embora de helicóptero que poderia ser usado para resgate de pessoas ou para trazer doações aos mais impactados. Sakamoto, em artigo no UOL, foi taxativo na sua análise que a tragédia é fruto da desigualdade social com a mudança do clima.

É óbvio dizer que tanto o genocídio Yanomami, quanto o fato das enchentes vitimarem, em sua maioria pessoas não brancas, são casos diretamente relacionados ao racismo ambiental. No geral, tanto para denúncias como para soluções, o foco é nas pessoas racializadas e minorizadas. Mas pouco se debate sobre o papel da branquitude nesses processos. O racismo é tão arraigado na nossa sociedade que passa despercebido até para os olhos de quem é (ou se acha) antirracista.

“Às vezes somos racistas sem saber que somos. É algo tão entranhado na nossa apreensão de mundo que, mesmo quando acreditamos não sermos, às vezes somos. Nas palavras, nos gestos, no caminho que alguns pensamentos fazem. Quantas vezes, por exemplo, amigos brancos não acharam que eram muito bacanas por tratarem bem os negros? A própria ideia de se achar incrível por tratar bem alguém de outra raça pressupõe que haveria um motivo para não tratar bem alguém de outra raça. E este já é um pensamento racista. Ou o famoso ‘não sou racista, tenho até amigos negros'”, reflete a jornalista Eliane Brum no artigo “De uma Branca para Outra“.

Um equívoco comum é achar que apenas atos violentos ou xingamentos possuem conotação racista. As tarefas de ser antirracista e de defender a Justiça Climática não são sinônimos de se colocar como um “branco salvador”. O termo é usado quando uma pessoa branca possui a crença em ser alguém capaz de “salvar” as pessoas não brancas de situações vulneráveis, como se fosse um herói (o white-savior é muito utilizado em roteiros hollywoodianos).

Ser antirracista tampouco é achar que se precisa assinar embaixo da ideia ou do trabalho de alguém racializado para que ele, somente assim, possa ser legitimado ou, ainda, falar no lugar da pessoa, como se ela não pudesse se expressar por si mesma. Ninguém precisa de tutela, mas de igualdade. Uma pessoa branca dizer que não se envolve com a questão racial por “não ter lugar de fala”, ou colocar a culpa no “racismo estrutural”, apenas busca encerrar o assunto para se eximir da responsabilidade que tem simplesmente por fazer parte da sociedade em que vive.

Sobre confusões de entendimento envolvendo o “lugar de fala”, a antropóloga Djamila Ribeiro, no “Pequeno Manual Antirracista”, esclarece que o conceito discute o locus social, ou seja, as experiências em comum. “Dessa forma, ter consciência da prevalência branca nos espaços de poder permite que as pessoas se responsabilizem e tomem atitudes para combater e transformar o perverso sistema racial que estrutura a sociedade brasileira”, discorre Djamila.

É fato que se vive dentro do racismo estrutural e institucional. O jornalista Manoel Soares, no livro “Para meu amigo branco”, aponta que o racismo não é um processo meramente consciente ou racional, mas muito emocional e inconsciente. Logo, é preciso um exercício para localizá-lo, “em primeiro momento, imperceptível para quem o executa”. O autor aponta para a importância das pessoas brancas buscarem conhecer o seu padrão de comportamento racial para fazer um mapeamento de sua identidade racial. Para isso, deve-se levar em consideração, inclusive, que o racismo estrutural poderá permear essas narrativas. O trabalho de se desconstruir, e até de encontrar onde estão os seus racismos, não é para trazer um sentimento de culpa, porém, de responsabilidade. Logo, de mudança.

A psicóloga Cida Bento, em seu livro “Pacto da Branquitude”, explica que são necessários o reconhecimento e o debate das relações de domínio (de gênero, raça, classe e origem) como sendo construídas por meio de pactos quase sempre não explicitados. Assim, os “outros” são racializados como se ser branco fosse ser “universal”.

De acordo com a cientista social Ruth Frankenberg, o conceito de branquitude refere-se à identidade branca enquanto alguém que se constrói socialmente. Sendo assim, um lugar de privilégios simbólicos, subjetivos e materiais. Nele, o sujeito branco vê o outro, analisa e o julga sem antes se analisar ou pensar em si como diferente, mas sempre como a regra e o padrão.

Para Cida Bento, a destruição deste “pacto narcísico” precisa ser não apenas individual, mas também coletivo, pautado em ações estruturais. Ao desnudar as relações de dominação, as pessoas podem tornar-se mais autoconscientes daquilo que as fazem preconceituosas e violentas. Podem dar-se conta, ainda, dos truques das propagandas (racistas); fortalecer a autonomia; resistir à desumanização das relações de dominação. “Diz respeito a se posicionar e fortalecer publicamente a retomada dos direitos constitucionais e das redes de proteção conquistadas pelas populações femininas, negras, quilombolas e indígenas”, reflete Cida.

A importância de entender o lugar de fala na Justiça Climática está em se dar conta das “nuances” da realidade que podem passar despercebidas por quem não as vivencia. Portanto, é crucial a representatividade nas esferas públicas e de toda a sociedade, para que cada vez menos injustiças ambientais e sociais ocorram. É preciso, também, tomar cuidado para não se cair na armadilha de acreditar que existe apenas uma única narrativa a ser contada sobre um Povo, como bem explicou a escritora Chimamanda Ngozi Adichie, no TED Talk “O perigo da história única“. Somente no Brasil, existem mais de 300 etnias indígenas. A África é um continente com 54 países diferentes. Se a diversidade cultural desses Povos foi desapropriada ou silenciada, isso não significa que não exista.

Ter um letramento sobre racismo no país da “democracia racial” é um desafio até para quem é negro. Isso não quer dizer que os não brancos não sintam os danos empírica e diariamente. O letramento racial e as ações de fato antirracistas são tarefas de todos, inclusive, de brancos. Para se lutar contra o genocídio Yanomami, e pelos que perdem suas casas e vidas nas enchentes, faz-se determinante se desfazer o pacto da branquitude e seus privilégios. E se fossem crianças brancas e ricas mortas? Ao invés das Yanomami? Ao invés das da Vila Sahy?

(*) Tatiane Matheus é jornalista e pesquisadora em Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão no Instituto ClimaInfo

ClimaInfo, 22 de fevereiro de 2023.

Clique aqui para receber em seu e-mail a Newsletter diária completa do ClimaInfo.