TUDO SOBRE O MARCO TEMPORAL – O Brasil na encruzilhada: marco temporal ou civilizatório?

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Em julgamento histórico em setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou, por 9 votos a 2, a tese do Marco Temporal para as demarcações de Terras Indígenas. O argumento jurídico estabelecia que os Povos Indígenas só teriam direito às terras que ocupavam ou já reivindicavam em outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A decisão final do STF representa uma vitória dos Povos Indígenas do Brasil e da sociedade, e um marco civilizatório para o país. Com caráter de “repercussão geral”, ela servirá para solucionar disputas judiciais em todas as instâncias do país  – atualmente, há 226 processos de demarcação de Terras Indígenas parados na Justiça.

Apesar de histórica, a decisão final da Suprema Corte não encerra as ameaças aos Direitos Indígenas: a reação ruralista foi imediata. No mesmo dia da conclusão do julgamento, o Senado aprovou, a toque de caixa, o Projeto de Lei (PL) 2.903, que institui o Marco Temporal para demarcações, em clara afronta ao STF e à Constituição. 

Além de insistir no Marco Temporal, o PL 2.903 busca inviabilizar novas demarcações de Terras Indígenas, barrar os processos demarcatórios em curso e abrir as terras já demarcadas para atividades econômicas e instalação de empreendimentos predatórios. A proposta permite a desconstituição de “Reservas Indígenas” e a possibilidade de contatos forçados com Indígenas Isolados, especialmente vulneráveis a doenças e conflitos, além de favorecer a grilagem, pois reconhece títulos de propriedade que estão sob áreas de ocupação tradicional.

O veto de Lula

O presidente Lula vetou parcialmente o PL 2.903. Em sua decisão, Lula rejeitou integralmente a tese do marco temporal, além de vetar outras ameaças perigosas da proposta ruralista – como a abertura das Terras Indígenas para atividades econômicas predatórias (como o plantio de transgênicos e instalação de rodovias e hidrelétricas, sem consulta), a flexibilização das políticas de proteção aos Povos Isolados e a revogação de áreas já demarcadas.

Embora tenha barrado os principais pontos inconstitucionais e abertamente genocidas da proposta ruralista, pelo menos dois problemas sérios permanecem na nova Lei, de acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB):

  1. O Artigo 26, que trata sobre a possível “cooperação” entre indígenas e não indígenas para a exploração econômica dos territórios, que pode aumentar o assédio e a cooptação de lideranças para atividades como agronegócio e mineração em seus territórios; e 
  2. O Artigo 20, que coloca o interesse da defesa nacional acima do usufruto exclusivo dos Povos Originários, o que pode justificar intervenções militares nos territórios indígenas, de acordo com o movimento indígena nacional.

Os Povos Indígenas têm sido espoliados desde 1500, quando os portugueses invadiram estas terras. Mas não havia, até agora, uma lei feita com esse propósito. Apesar de vetar o pior do PL 2.903, o Congresso ruralista conseguiu alterar a legislação sobre Terras Indígenas no Brasil com as bençãos dos articuladores políticos do governo Lula.

Movimentação ruralista

Desde o resultado parcial do julgamento do “marco temporal”, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) passou a ameaçar paralisar as votações no Congresso e vem articulando o apoio de outras bancadas, como as da bala e da bíblia, contra a decisão do STF. A bancada ruralista tenta, pelo menos desde 2010, avançar sobre os territórios dos primeiros brasileiros, como parte de sua agenda de destruição do país.

Não é de hoje que a bancada ruralista no Congresso tenta avançar sobre as terras públicas do Brasil. Essa investida traduz-se numa feroz disputa pelo território nacional e seus recursos naturais após sucessivos ciclos de avanço predatório da fronteira econômica. O que está em jogo são as áreas protegidas do país: Terras Indígenas (TIs), remanescentes de Quilombos e Unidades de Conservação (UCs), além de áreas já griladas “passíveis de legalização” – justamente as áreas críticas para a proteção da biodiversidade e do clima global.

Como parte da sua agenda de destruição, os ruralistas apresentaram também uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para alterar o artigo 231 e estabelecer o Marco Temporal na Constituição. Porém, a decisão do Supremo reforça os Direitos Indígenas como direitos fundamentais e que, portanto, não podem ser alterados.

O que acontece agora?

Os vetos parciais ao PL, agora sancionado como Lei 14.701, serão analisados pelo Congresso Nacional em uma sessão conjunta entre deputados e senadores. Em nota, a APIB alerta que o movimento indígena e a sociedade devem seguir mobilizados para impedir que os vetos sejam derrubados pelo Congresso. 

Caso os vetos presidenciais sejam derrubados, o texto promulgado passa a valer como lei. Mas, mesmo em vigor, a lei pode ser questionada no STF. Ou seja, na prática, a controvérsia voltaria ao tribunal cabendo ao Supremo definir se a lei é válida ou não. Considerando que a decisão sobre a inconstitucionalidade do marco temporal foi por ampla maioria, a lei seria considerada nula.

Em tempo: Ocupação de boa fé

A principal novidade da decisão do STF sobre o caso, até agora não prevista na legislação, é a possibilidade de pagamento de indenização da terra para produtores rurais que tiverem de ser removidos de suas propriedades. Hoje, segundo a Constituição, a indenização deve ser feita apenas pelas benfeitorias. 

Segundo a decisão, haverá direito à indenização quando houver ocupação de boa-fé e o proprietário tiver um título expedido pelo Estado, em casos em que for comprovado que os indígenas não estavam no território e não havia disputa judicial ou conflito em campo em outubro de 1988.

Além disso, segundo a decisão do STF, o governo poderá assentar uma comunidade indígena em outra área que não a de ocupação tradicional, por meio da desapropriação de terras para constituição de “reservas”, no caso de “absoluta impossibilidade de concretização da ordem constitucional de demarcação”. Nesses casos, as comunidades indígenas seriam ouvidas, mas não teriam o direito de vetar a decisão.

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Por Tica Minami, ClimaInfo

ClimaInfo, 30 de outubro 2023.

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08/04 – Lei do marco temporal já trava novas demarcações, afirma Sonia Guajajara

7/02 – AGU pede ao STF que mantenha suspensão de ações sobre o marco temporal

18/12 – Indígenas pedem ao STF derrubada de marco temporal inconstitucional

08/12 – Investidores com US$ 10 trilhões defendem veto ao marco temporal

23/11 – Marco temporal volta ao Congresso e é alvo de mobilização indígena

8/11 – Governo e oposição concordam com votação sobre vetos de Lula ao marco temporal nesta semana

25/10 – Deputados do Agro rejeitam negociação com o governo e preveem derrubada de vetos de Lula à lei sobre o marco temporal; Planalto ainda tenta um acordo.

24/10 – Aliados de Lula que fazem articulação com congressistas e também com produtores rurais tentam acalmar a FPA negociando um projeto para tratar apenas das indenizações.

23/10 – Lula vetou o marco temporal, mas manteve alguns pontos da lei, como a possibilidade de exercício de atividades econômicas no território; ruralistas prometem derrubar veto.

20/10 – Enquanto aguardam decisão de Lula sobre PL 2903, grupos indígenas articulam resposta contra o marco temporal no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal (STF). 

19/10 – O governo federal segue tentando se equilibrar na corda-bamba armada pelos ruralistas com a aprovação do projeto de lei que institui um marco temporal para demarcação de Terras Indígenas. 

18/10 – Sob pressão de ruralistas e indígenas, governo ainda avalia se irá sancionar ou vetar lei que restringe direitos dos Povos Indígenas à demarcação de terras. 

16/10 – Carta de 61 entidades classifica projeto de “maior violação aos Direitos Humanos desde a ditadura”; ministérios se posicionam e recomendam veto integral à lei inconstitucional.