Asfaltamento da BR-319 pode gerar novas pandemias, alertam cientistas

BR-319
FUNAI

Estudo aponta que obra, alvo de pressão do Congresso e de alas do governo federal, contribuirá para desmatamento e crescimento de doenças transmitidas por animais.

Mesmo antes de receber um só centímetro de asfalto, o trecho do meio da BR-319, rodovia de cerca de 800 km que liga Manaus (AM) e Porto Velho, já vem provocando estragos na Floresta Amazônica. Somente a perspectiva de pavimentação fez crescer o desmatamento e as queimadas em algumas localidades, se estendendo por estradas estaduais a ela ligadas. Mas, além da devastação, a polêmica obra pode ser o vetor de doenças infecciosas, provocadas por microorganismos presentes em animais da região. Assim como foi com a COVID-19.

É o que mostra um texto publicado na revista científica Nature pelos pesquisadores Lucas Ferrante, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), e Guilherme Becker, da Universidade Estadual da Pensilvânia (EUA). Segundo os cientistas, o asfaltamento do trecho do meio pode prejudicar as metas climáticas ao acelerar a perda da biodiversidade no bioma, além de propiciar saltos de zoonoses – doenças infecciosas transmitidas dos animais para os seres humanos – que podem desencadear novas pandemias.

“Este bloco da floresta é o maior reservatório de patógenos do nosso planeta, tais como vírus, fungos, bactérias e príons. O asfaltamento aumentará tanto o desmatamento como a mobilidade humana na região. Estes fatores tendem a propiciar saltos zoonóticos que podem resultar em uma sequência de pandemias e no fortalecimento da disparidade na saúde pública”, explica Ferrante n’O Globo.

A preocupação é crescente porque políticos locais, congressistas e alas do governo federal vem aumentando a pressão pelo asfaltamento da BR-319. A obra seria incluída no Novo PAC, mas o governo recuou e determinou a elaboração de mais estudos sobre seus impactos socioambientais. Contudo, o Grupo de Trabalho formado para isso conta apenas com representantes do Ministério dos Transportes (MT) e do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT). Ninguém do Ministério do Meio Ambiente (MMA) ou do IBAMA faz parte, ou do Ministério da Saúde.

Numa audiência pública realizada em janeiro em Porto Velho, feita como parte dos estudos, o secretário-executivo dos Transportes, George Santoro, afirmou que “a gente precisa conseguir a licença de instalação” para as obras. E deu garantias de que a BR-319 deverá ser concluída no governo Lula – a despeito do grupo de trabalho ainda trabalhar nas análises.

No texto na Nature, o cientista da UFAM aponta na Agência Cenarium outro interesse por trás das obras: facilitar o acesso rodoviário a áreas de exploração de petróleo e gás fóssil, como as que foram ofertadas pela ANP no Leilão do Fim do Mundo, em dezembro passado. Por isso, defende que o governo federal feche definitivamente a rodovia, suspendendo as licenças tanto de instalação, concedida em julho de 2022, como de manutenção.

O pesquisador do INPA, Philip Martin Fearnside, que estuda impactos de obras de infraestrutura na Amazônia há décadas, também tem falado sobre os perigos associados à pavimentação da BR-319.

“Os riscos são enormes, e o Estado brasileiro não tem e não terá capacidade de conter os impactos num horizonte de tempo que vai muito além de qualquer mandato político. O custo seria astronômico. Qual é o plano para controlar o desmatamento em Roraima e na região Trans-Purus? Os riscos ferem os interesses nacionais mais básicos, inclusive a manutenção da cidade de São Paulo. A floresta na região Trans-Purus, que é ameaçada pela AM-366, AM-343 e outros projetos ligados à BR-319, é a principal fonte de água para a maior cidade do país, sendo que a reciclagem de água pela floresta nessa área é chave para suprir o vapor d’água aos ventos conhecidos como ‘rios voadores’ que levam a água para o Sudeste”, explicou, em artigo publicado no Amazônia Real, Mongabay e Blog do Pedlowski.

 

ClimaInfo, 22 de fevereiro de 2024.

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