Emergência climática: onde ondas de calor, combustíveis fósseis, dengue e inflação dos alimentos se encontram

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Reprodução via OHoje.com

Enquanto a indústria de combustíveis fósseis e o agronegócio não forem responsabilizados pelos estragos ao clima, conta será paga pela humanidade, principalmente pelos mais pobres

Rio 40 graus é coisa do passado. A onda de calor – a terceira nos três primeiros meses ainda incompletos de 2024 – que vem torrando boa parte do Brasil fez o bairro de Guaratiba, na zona oeste da cidade, registrar sensação térmica de 62,3ºC. Em São Paulo, no mesmo sábado, 16 de março, os termômetros chegaram a 34,7ºC, a marca mais alta para o mês em pelo menos 81 anos.

As águas de março que costumavam fechar o verão estão cada vez mais irregulares. Ou temos muita chuva alagando ruas e bairros e provocando a tragédia dos deslizamentos – na maioria das vezes nas periferias das cidades, onde a maioria da população é preta e pobre – ou a falta dela. Que, claro, também seca mais nas torneiras de pretos e pobres.

Mas nada disso é característica exclusiva do verão de 2024. Já no ano passado, vivemos temporais incomuns e ciclones extratropicais também fora da normalidade no Sul. Por meses uma seca histórica atingiu a Amazônia, que fez o rio Negro, um dos maiores da região, atingir seu menor nível em 120 anos. O Centro-Oeste oscilou entre termômetros acima do normal, chuvas extremas e estiagens improváveis.

Toda essa “ciclotimia climática” vem se refletindo também nos produtos agrícolas brasileiros. Não estamos falando de eventos sazonais, comuns, que fazem os preços dos hortifrutigranjeiros oscilarem em determinadas épocas do ano. Estamos falando de safras comprometidas por eventos climáticos que não costumavam acontecer. A prova mais recente disso são as revisões, sempre para baixo, das projeções para a safra 2023/2024 da soja, a principal commodity agrícola de exportação do Brasil. E tudo isso se reflete nos preços que pagamos por esses produtos.

Além disso, as chuvas em excesso e o calor extremo criaram um ambiente perfeito para a proliferação do Aedes aegypti, o mosquito transmissor da dengue. Em menos de três meses de 2024, o Brasil já bateu seu recorde histórico de casos da doença – 1.889.206 casos até 2ª feira (18/3). E regiões do país que antes quase não registravam casos, por serem mais frias, agora convivem com a explosão do número de contaminados. 

O El Niño pode ter sido a “cereja do bolo”, mas esses e outros episódios climáticos extremos que atingiram e continuam atingindo o Brasil e todo o mundo tem nome e sobrenome: mudanças climáticas. Elas não são causadas pelo consumo ou decisão de cada um, mas por um sistema econômico predatório, que tem a indústria de combustíveis fósseis e o agronegócio, com o aval de governos, como seus principais agentes. E que tenta colocar a culpa da emergência climática nas pessoas, isentando-se dos estragos que causaram – e continuam causando.

Se a crise climática tem seus responsáveis claramente identificáveis, seus efeitos atingem todos, mas se tornam mais cruéis nos países pobres do Sul Global. Exemplo disso foi mostrado por um estudo de atribuição do World Weather Attribution (WWA), grupo internacional de cientistas que analisam a relação entre eventos extremos específicos e as mudanças do clima. Os pesquisadores mostraram que a forte onda de calor que assolou a maior parte do Brasil e a região central da América do Sul em setembro do ano passado se tornou até 100 vezes mais provável por conta da mudança climática.

2023, o ano mais quente da história

O relatório State of the Global Climate, da Organização Meteorológica Mundial (OMM), divulgado na 3ª feira (19/3), confirma que 2023 foi o ano mais quente da história. A temperatura global média na superfície do planeta ficou próxima 1,45°C (com uma margem de incerteza de ± 0,12°C) acima dos níveis pré-industriais. O ano passado fechou o período de 10 anos mais quente já registrado, afirmou a OMM.

Na verdade, 2023 superou todos os recordes, de acordo com a organização. Estamos falando de níveis de gases de efeito estufa, temperaturas superficiais, aquecimento e acidificação dos oceanos, aumento do nível do mar, cobertura de gelo marinho na Antártica e recuo de geleiras.

Ondas de calor, inundações, secas, incêndios florestais e ciclones tropicais de rápida intensificação causaram miséria e caos, reforça a OMM. Os eventos climáticos extremos e cada vez mais frequentes viraram a vida cotidiana de milhões de pessoas de cabeça para baixo e causaram bilhões de dólares em perdas econômicas

O observatório climático europeu Copernicus já havia indicado, em janeiro, que 2023 foi o ano mais quente da história. A temperatura média global foi de 14,98ºC, 0,17ºC maior que o recorde anterior, registrado em 2016. Além disso, é 0,6ºC mais quente do que a média para o período de 1991 a 2020 e, mais importante, 1,48ºC mais quente do que os níveis pré-industriais (1850-1900). A um fio do limite determinado no Acordo de Paris.

Mesmo diante desse recorde, tudo indicava que a “fervura” iria não apenas continuar este ano como até superar a do ano passado. Fevereiro já foi uma prova disso. Por quatro dias seguidos – de 8 a 11 de fevereiro –, a temperatura média global ficou 2°C acima dos níveis registrados antes da Revolução Industrial. Foi a maior sequência de temperaturas acima de 2°C já registrada, disse o diretor do Copernicus, Carlo Buontempo.

Nome – e responsabilização – aos bois

Já é mais do que sabido que as mudanças climáticas que estão fervendo o mundo e o Brasil – que registrou recorde de demanda de eletricidade no fim de semana passado por causa do calor – e causando a explosão da dengue no país, junto com o desmatamento, como constatou um estudo da Fiocruz, são efeito das emissões de gases de efeito estufa. E é a queima dos combustíveis fósseis a principal responsável pelo aumento desses gases na atmosfera do planeta.

Enquanto as petroleiras, Petrobras incluída, insistem em aumentar a produção de petróleo e gás fóssil, as emissões do setor de energia continuam batendo recordes, destacou a Agência Internacional de Energia (IEA, sigla em inglês). Foram 37,4 bilhões de toneladas de CO2 jogadas no ar em 2023, um crescimento de 410 milhões de toneladas – 1,1% – sobre o registrado em 2022. 

O crescimento das emissões de poluentes climáticos da produção de energia elétrica, especificamente, pasmem, foi provocada por secas históricas, que reduziram a geração de hidrelétricas em todo o planeta. Seria uma espécie de “lei do retorno”, pela responsabilidade do segmento nas mudanças climáticas?

A “lei do retorno” também vale para o agronegócio brasileiro, atingido pelos extremos climáticos. O segmento é o principal responsável pelo desmatamento na Amazônia e no Cerrado, a maior parte dele feito para expansão da pecuária. E a pecuária é um dos principais emissores de metano do planeta – atrás apenas, claro, dos combustíveis fósseis.

O ciclo se fecha. Mas o que não pode ser fechado é a isenção da responsabilidade que esses setores econômicos insistem em empurrar goela abaixo da sociedade. Quando cobradas, a indústria dos combustíveis fósseis e a agropecuária fazem de tudo para não pagar pelo que fizeram e ainda fazem. Para piorar, jogam para o consumidor a responsabilidade de “salvar o planeta”.

Ações individuais têm alguma importância. Mas a reversão do cenário climático catastrófico, que está a cada dia mais próximo, depende de os verdadeiros responsáveis pela crise climática assumirem sua culpa e pagarem pelo que causaram. Para isso, precisam mudar urgentemente seus modelos produtivos. 

É preciso eliminar os combustíveis fósseis e zerar o desmatamento o quanto antes, isso também já é sabido. São ações que dependem muito mais de corporações e governos do que de pessoas agindo por conta própria. Jogar a culpa nos cidadãos é, no mínimo, desonesto. 

Assim, não são as “ações humanas” as responsáveis pelas mudanças climáticas. Mas sim as ações estimuladas por um modelo de desenvolvimento econômico que já se mostrou ineficiente não apenas para proteger o planeta, mas para incluir todas as pessoas que nele vivem num estado de bem-estar social.

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Por Alexandre Gaspari, Jornalista no ClimaInfo.

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ClimaInfo, 19 de março de 2024.

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