Relatório mostra o saldo da moda no Cerrado: 816 mil toneladas de algodão proveniente de desmatamento e grilagem

11 de abril de 2024
algodão Cerrado 2
Reprodução

 Conflitos agrários marcam algodão que sustenta indústria trilionária, alimentando multinacionais como H&M e Zara. Concentração de terra e falta de legislação contribuem para o cenário.

A indústria da moda está diretamente ligada ao desmatamento do Cerrado. Essa é a conclusão de um relatório da Earthsight, que por mais de um ano analisou a cadeia produtiva do algodão brasileiro e identificou 816 mil toneladas de algodão “contaminado” vendidas a empresas multinacionais como H&M e Zara. O algodão manchado de corrupção, violência e grilagem de terras sai de empresas do agronegócio pertencentes a algumas das famílias mais ricas do Brasil. A corrupção nessa indústria, que nem mesmo certificados como o BCI (Better Cotton Iniciative) conseguem regular, explica parte do contínuo aumento de desmate no bioma. 

Segundo a Associação Brasileira de Produtores de Algodão (Abrapa), o Brasil é hoje o segundo maior exportador de algodão do mundo e tem projeção de se tornar o maior até 2030. Quase todo o contingente da commodity é cultivado no Cerrado, em especial no Mato Grosso e na Bahia. É no município baiano de Formosa do Rio Preto onde está a “famosa” propriedade Estrondo, considerada um dos maiores casos de grilagem de terras do Brasil, que cultiva algodão, soja e outras commodities. 

Para fazer a ligação entre o algodão que sai de regiões de conflitos fundiários com gigantes da indústria da moda, a Earthsight analisou imagens de satélite, decisões judiciais, registros de exportação e participou de feiras comerciais globais. O documento lançado nesta 5ª feira (11/4) aponta que “em termos de pressão sobre a terra decorrente do consumo da União Europeia, os produtos têxteis ficam em segundo lugar, atrás apenas do consumo de alimentos”.

O desmatamento no Cerrado tem tido números alarmantes. Considerado a “caixa d’água do Brasil”, o bioma ocupa quase um quarto do território brasileiro, abriga um terço da biodiversidade do país e 5% da global. Ainda sim, teve 50% do seu território desmatado nos últimos 40 anos. O Sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), revelou que, em 2023, as taxas de desmatamento no bioma aumentaram 43% em comparação com o ano anterior. Segundo o relatório da Earthsight, essa destruição cria impactos climáticos equivalentes a 50 milhões de carros a mais na estrada a cada ano.

Os conflitos gerados pela produção de algodão e também de outras commodities no bioma são diversos, mas sempre atingindo populações locais, como os geraizeiros. O assunto é amplamente divulgado pela mídia, como Brasil de Fato, Greenpeace e Repórter Brasil. O método mais utilizado pelas fazendas investigadas são coerção e intimidação. “Membros de comunidades que viveram em harmonia com o Cerrado por séculos estão sendo expulsos de suas terras, proibidos de exercer suas atividades de subsistência, sujeitos a vigilância, intimidação e roubo de gado por pistoleiros das fazendas”, relata o relatório.

Propriedades como as administradas pelo Grupo Horita e SLC, no oeste baiano, são citadas pelo documento. E entre os investidores está Crispin Odey, um dos maiores financiadores da campanha do Brexit no Reino Unido, que comparou, em 2020, as infrações ambientais no Cerrado a uma “multa de estacionamento”. 

“Essas empresas estrangeiras deveriam se envergonhar. O mundo inteiro hoje compra algodão e soja contaminados pela grilagem de terras”, argumenta um professor e morador da comunidade tradicional de Arrojelândia.

No meio da destruição, uma indústria trilionária

De acordo com a Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), a moda e o design geraram mais de US$ 2,5 trilhões em vendas anuais em todo o mundo em 2023. As 816 mil mil toneladas de algodão “contaminados” rastreados pela Earthsight foram vendidos para até oito empresas asiáticas, que produziram quase 250 milhões de peças de roupas e artigos para casa. Além das lojas globais H&M e Zara, também foram identificadas marcas “irmãs” da Zara, Bershka, Pull&Bear, entre outras. 

Uma tentativa da indústria em diminuir os impactos socioambientais são os certificados, como o BCI (Better Cotton Iniciative), divulgado por redes de moda como “algodão sustentável”. Como salienta o relatório Índice de Transparência na Moda Brasil 2023, “quase todo algodão brasileiro produzido em larga escala é vendido como ‘responsável’, ‘melhor’, ‘sustentável’. Contudo, ainda que o consumidor possa rastrear a jornada de uma peça por QR Code e saber quais são as melhores práticas associadas ao produto, o algodão padrão BCI ainda não elimina agrotóxicos e sementes transgênicas nem reduz as desigualdades sociais”. 

Apesar do grande lobby da indústria da moda para tornar o BCI um certificado confiável, o certificado ainda é “repleto de falhas, conflitos de interesse e um aplicação fraca”, destaca o relatório da Earthsight. “O algodão proveniente de terras desmatadas ilegalmente antes de 2020, por exemplo, ainda é certificado, mesmo se todos os indícios mostram que foi produzido em terra roubada de comunidades locais”, exemplifica.

Entre saídas, a legislação

Sam Lawson, diretor da Earthsight, é taxativo: “legisladores nos países consumidores devem implementar leis fortes com aplicação rigorosa. Enquanto isso, os compradores devem pensar duas vezes antes de comprar sua próxima peça de roupa de algodão”. 

O documento também aponta a omissão, ou conveniência, dos governos estaduais para enfraquecer as legislações ambientais – como mostram o EcoDebate e O Eco

Segundo levantamento, a Bahia não conseguiu mapear todas as terras públicas do estado a fim de conceder direitos fundiários às comunidades tradicionais que as habitam. O número de licenças de desmatamento disparou, com autorizações de supressão de vegetação sendo emitidas para mais de 750.000 hectares entre 2012 e 2021.

Há quem diga que para salvar a Amazônia, o Cerrado tem sido sacrificado pelo agronegócio. O Cerrado, porém, é essencial para a preservação da Amazônia – e de toda a biodiversidade brasileira. Ele é, inclusive, necessário para o futuro rentável do agronegócio. “Essa série de retrocessos nas políticas ambientais deve ser revertida imediatamente”, afirma o relatório. 

As empresas Horita, SLC, Estrondo, Abrapa, Bergamaschi publicaram respostas diante dos cenários apresentados. O relatório foi também notícia em De Olho Nos Ruralistas, DW e RFI

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Pesquisa, apuração e texto Juliana Aguilera, Jornalista no ClimaInfo.

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ClimaInfo, 11 de abril de 2024.

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