
O bloco FZA-M-59, na foz do Amazonas, onde a Petrobras quer perfurar um poço para explorar petróleo, não é a única ameaça da indústria de combustíveis fósseis na Amazônia. Além de outras áreas sob concessão também no litoral do Amapá, já existem campos de produção de combustíveis fósseis em plena Floresta Amazônica. Sem falar em outras áreas também já concedidas, tanto em terra quanto no mar.
Os riscos não param aí. Há blocos na Amazônia que estão na oferta permanente de concessão (OPC) da Agência Nacional do Petróleo (ANP) que podem ser vendidos a qualquer momento. O órgão regulador já marcou para 17 de junho um leilão que inclui 47 áreas na foz do Amazonas. Logo, a liberação da licença para a Petrobras no bloco 59 é uma “porteira aberta” para a exploração de petróleo e gás fóssil na região, que é crítica para o clima e para a sociobiodiversidade.
Mas, afinal, por que não se deve explorar petróleo e gás fóssil na Amazônia, seja no seu litoral, que se estende do Amapá até a costa do Maranhão, seja em terra?
Investir nessa exploração é um péssimo negócio. Tanto para as comunidades locais, incluindo indígenas e quilombolas, como para toda a população brasileira, e até mesmo para a Petrobras, outras petroleiras e o governo brasileiro.
A indústria de petróleo e gás e os governos vendem a ideia de que os combustíveis fósseis geram “riqueza”. Mas a realidade é outra. Enquanto poucos lucram muito, a maioria da população arca com prejuízos sociais e ambientais. Mas, com a tendência, já apontada pela Agência Internacional de Energia (IEA), de que a demanda por petróleo entrará em queda a partir de 2030, investir em novas frentes de exploração, como o Brasil quer fazer na Amazônia, será prejuízo até mesmo para quem até agora ganhou muito com a atividade: as petroleiras e seus acionistas.
Vamos aos fatos:
- Especificamente na foz do Amazonas, não há qualquer certeza de que há petróleo e gás fóssil
Até hoje, já houve a perfuração de cerca de 100 poços para exploração de combustíveis fósseis na foz, entre os litorais do Pará e do Amapá. Muitos deles não foram finalizados por problemas técnicos, já que a região é atingida por fortes correntes. Outros não encontraram petróleo ou gás, ou, se encontraram, a quantidade não justificava o investimento.
O governo brasileiro usa a exploração bem-sucedida da Guiana para justificar o poço no litoral do Amapá. Mas a distância entre as áreas é de cerca de 1000 km. Apesar da aparente similaridade entre as regiões, não há qualquer garantia de que há petróleo e gás fóssil nos blocos da foz.
- A Amazônia é uma região de altíssima sensibilidade ambiental, tanto na foz do Amazonas como em áreas da floresta, um ecossistema crítico para o clima do planeta e a biodiversidade
Em outros países da Bacia Amazônica, como o Peru e o Equador, já houve vários acidentes em instalações petrolíferas, com vazamentos de petróleo que contaminaram água e solo, afetando não só a biodiversidade como comunidades locais.
O mesmo vale para a foz do Amazonas. Além do grande recife de corais amazônico, que abriga uma biodiversidade imensa, os manguezais dos litorais do Amapá e do Pará são únicos. Como mostra o g1, a região litorânea amapaense conta com o maior cinturão de manguezais do mundo – que se estende pela costa da Amazônia e representa 80% da cobertura do país. Esses manguezais abrigam fauna e flora, ajudam na fixação de gases de efeito estufa no solo, colaborando para atenuar as mudanças climáticas, e são a fonte de sustento de milhares de pessoas de comunidades, incluindo indígenas e quilombolas.
Desde 2016, o governo dispõe de um atlas que mapeia a vulnerabilidade da bacia da foz do Amazonas a um derramamento de petróleo. O documento aponta uma capacidade altíssima de ecossistemas da região da foz de absorverem hidrocarbonetos; uma extrema sensibilidade da costa a óleo; e uma altíssima dificuldade de limpeza de manguezais, abundantes na região, e de florestas de várzea, áreas úmidas e praias, em caso de vazamentos.
- O risco técnico de se explorar combustíveis fósseis na foz do Amazonas é altíssimo, com maior probabilidade de acidentes e estragos ambientais e sociais incalculáveis.
Em 2011, a Petrobras tentou perfurar um poço numa área próxima do atual bloco FZA-M-59, que quer explorar hoje. Mas não conseguiu. A plataforma que seria usada para abrir o poço foi arrastada pelas fortes correntes marítimas da região, que são influenciadas pelo imenso volume de água despejado pelo rio Amazonas.
O episódio resultou em vazamento de fluidos de perfuração, o que motivou uma multa do IBAMA à petroleira. Que não pagou a punição.
Mas o fato é que nesse período de tempo não houve evolução tecnológica na indústria de petróleo e gás fóssil que possa garantir que acidentes semelhantes não irão ocorrer hoje. Mas os estragos de um vazamento de petróleo foram mensurados.
Um estudo feito ano passado pelo Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (IEPA) com apoio do Greenpeace Brasil verificou que um vazamento de petróleo no bloco 59 contaminaria tanto o litoral do Amapá como atingiria a costa dos países vizinhos, como Guiana Francesa, Suriname e Guiana. No processo de licenciamento, a própria Petrobras admitiu que um vazamento de óleo na área atingiria oito países, incluindo nações do Caribe.
- Entre encontrar petróleo e gás fóssil e iniciar sua produção há um longo tempo. Qualquer possível ganho econômico não é para agora.
A perfuração de um poço de combustíveis fósseis leva dias ou semanas. Se hoje, em fevereiro de 2025, a Petrobras encontrasse petróleo ou gás fóssil em quantidade que julgue ser comercial, são pelo menos seis anos entre este momento e o início da produção. Somente a partir daí haveria o recolhimento de impostos e royalties, que vão depender do volume produzido e da qualidade do petróleo, que vai determinar seu preço no mercado. Até lá, não há qualquer benefício fiscal para os governos, seja da cidade de Oiapoque, seja do Amapá, seja para o governo federal.
Quando a descoberta acontece em terra o tempo costuma ser menor. Mas vale lembrar que instalar equipamentos pesados como os da indústria de combustíveis fósseis no meio da Floresta Amazônica, em casos de blocos terrestres, não é uma operação fácil nem rápida. Ou seja, vale a mesma premissa: ganhos, se houver, somente anos e anos depois da descoberta.
- Os royalties que políticos adoram dizer que ganharão com petróleo e gás fóssil dependem do volume produzido.
Essa regra vale tanto para a Amazônia como para qualquer outra região do país. Os royalties são uma compensação, garantida em lei, para minimizar os impactos da indústria petrolífera e também para garantir que cidades e estados possam estimular outras atividades econômicas que vinguem após o fim das atividades petrolíferas.
Só que esse dinheiro depende do volume produzido. Ou seja, pode render muito, como ocorre nos campos do pré-sal, que têm grandes volumes de petróleo e gás fóssil, ou pouco, como ocorre muito em áreas terrestres. E também da “qualidade” do petróleo – se ele é mais “fácil” de refinar, tem preço maior. Ou seja, contar com royalties para “distribuir riqueza” é acreditar em algo que não se sabe se vai se cumprir. Já os custos sociais, ambientais e climáticos são certos com a indústria petrolífera. Enquanto ela ganha dinheiro, a população paga a conta dos efeitos das mudanças climáticas e de vazamentos de petróleo.
- Petróleo gera riqueza para poucos e problemas para todos, principalmente para os mais pobres
Falando em royalties, na Amazônia brasileira já temos exemplos de cidades que abrigam campos de produção de combustíveis fósseis e onde a grande maioria dos moradores continua vivendo na pobreza, como Coari e Silves, no Amazonas, em uma série de reportagens dos repórteres André Borges e Ruy Baron. A Petrobras e a Eneva operam nessas regiões, que continuam sofrendo com graves problemas de infraestrutura e de oferta de serviços públicos, falta de oportunidades de emprego e de geração de renda e baixo desenvolvimento social.
Há outros exemplos fora da região amazônica, como Macaé, no estado do Rio de Janeiro, e Santo Antônio dos Lopes, no Maranhão, mostra Juliana Aguilera, do ClimaInfo. Porque o petróleo, seja aqui ou em qualquer outro lugar do mundo, enriquece poucos e causa prejuízos ambientais, sociais e econômicos para todos, mas principalmente para os mais pobres. Não há royalties que deem jeito.
- O Amapá já sofre com ocupação desordenada e falta de infraestrutura só com a possibilidade de haver petróleo no FZA-M-59. Isso acontece em todo o país.
A indústria do petróleo e do gás fóssil se “vende” como geradora de riquezas. Quando surge uma oportunidade, milhares de pessoas costumam migrar para regiões que poderão abrigar a atividade em busca de melhores oportunidades de vida. Isso já está acontecendo em Oiapoque, no norte do Amapá. Mas a cidade não tem condições de receber tanta gente em tão pouco tempo. Nem haverá empregos para todos.
O resultado é que muita gente que vai em busca de uma vida melhor acaba sofrendo muito mais. Os bons empregos da indústria de combustíveis fósseis, que pagam os salários mais altos, são altamente qualificados e para poucos. A grande maioria vai ter de se contentar com trabalhos com remuneração bem mais baixa ou “bicos”.
Sem falar que essa indústria também inflaciona os preços onde chega, seja de moradia, de produtos ou de serviços. Na Amazônia, uma região onde a oferta já é dificultada por suas características logísticas, essa indústria tende a piorar esse cenário.
Em resumo: os combustíveis fósseis causam as mudanças climáticas e ainda provocam crises sociais.
- Se tiver sucesso na foz do Amazonas, a produção da Petrobras só vai começar quando a demanda global de petróleo estiver em queda. É prejuízo certo.
Considerando os seis anos mínimos que a própria Petrobras calcula entre a perfuração do primeiro poço na foz do Amazonas e o início da produção, estamos falando – se tudo der certo hoje – em 2031, pelo menos. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) projetou que [se tudo der certo hoje, vale ressaltar], o pico da produção no FZA-M-59 seria atingido em 2040.
Só que até lá, segundo projeções da Agência Internacional de Energia (IEA), a demanda global por petróleo já vai estar em queda firme – o pico da demanda é projetado para ocorrer até 2030 -, por causa do avanço das fontes renováveis de energia e da eletrificação dos transportes. No Brasil, a Petrobras projeta estabilidade da demanda a partir de 2030.
Isso significa que o petróleo da foz poderá não ter comprador. Será um prejuízo para a Petrobras e para toda a sociedade brasileira, já que é o governo brasileiro o principal acionista da empresa e que ganha com seus lucros – e perde com seus prejuízos.
- A tragédia climática no Rio Grande do Sul e a seca histórica na Amazônia são exemplos de que as mudanças climáticas já são uma realidade. Explorar petróleo na Amazônia só vai piorar esse quadro.
Todos ainda lembramos do que aconteceu no Rio Grande do Sul em maio do ano passado. Centenas de mortos, milhares de desalojados em quase todo o estado por causa de chuvas anormais. Foi comprovado que a principal causa dos temporais incomuns foram as mudanças climáticas, que têm na queima dos combustíveis fósseis a sua principal causa.
Só no Rio Grande do Sul, os gastos governamentais para a recuperação do estado superaram R$ 100 bilhões. As perdas no PIB gaúcho são calculadas em quase R$ 100 bilhões. Mais de 110 mil casas foram destruídas ou danificadas. Mais de 206 mil propriedades rurais foram afetadas. Sem falar nas cerca de 200 mortes.
Não há petróleo a mais que justifique esse gasto. Ainda mais com a expectativa de queda dos preços dos combustíveis fósseis com a demanda em queda a partir de 2030, como projeta a IEA.
A Amazônia também não passou ilesa. Várias comunidades foram atingidas por secas severas por dois anos consecutivos por causa das mudanças climáticas. Faltou água na maior bacia hidrográfica do planeta, algo inimaginável se o clima do planeta não estivesse mudando. Faltou comida, faltaram remédios. Plantações foram perdidas. Custos que nenhum royalty cobre.
- Não é só o desmatamento que ameaça a Amazônia. O aumento das emissões com mais combustíveis fósseis também afeta a maior floresta tropical do planeta.
Um estudo publicado na revista Nature Climate Change em 2022 mostrou que a Floresta Amazônica corre sério risco de atingir até 2050 o chamado “ponto de não retorno” – estágio a partir do qual o bioma perde suas características ecossistêmicas básicas e se degrada.
O desmatamento e os incêndios surgem como a principal ameaça à região. Mas o agravamento das mudanças climáticas, que são provocadas principalmente pela queima de combustíveis fósseis, contribui bastante para a degradação da Floresta Amazônica. Que vem perdendo seu importante papel de reguladora do clima global com o aumento da quantidade de carbono na atmosfera.
Pouco importa se o Brasil tem uma matriz elétrica das mais limpas do mundo e que o petróleo que se quer produzir na Amazônia não será queimado no Brasil. A atmosfera não é dividida em “caixinhas”. Tanto assim que pagamos um preço alto pelas emissões dos países ricos, historicamente os líderes em “sujar” o planeta. Onde ele for queimado, ele causará impactos aqui. E também na Floresta Amazônica. Portanto, se quisermos salvar a Amazônia – e a nossa existência no planeta – é fundamental estancar a exploração e o consumo de combustíveis fósseis. E o Brasil tem a faca e o queijo nas mãos para isso. Como mostrou um estudo recente do Net Zero Industrial Policy Lab (NZIPL), da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos, o país tem [quase] tudo para ser um líder mundial rumo a uma economia verde. A abundância de recursos naturais e uma base industrial consolidada são suas principais vantagens. No entanto, para aproveitar esse potencial e assumir tal liderança, o país precisa eliminar já lacunas em políticas públicas que podem comprometer a trajetória rumo à descarbonização econômica. E produzir mais petróleo, ainda mais na Amazônia, é uma dessas lacunas que vão nos afastar da liderança global da transição energética justa.