A conta do clima extremo nos países pobres: quem paga pela (in)justiça climática?

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Melissa Fernandes / Folha de Pernambuco
Intensificação de eventos extremos coloca financiamento climático e compensação por perdas e danos na lista de prioridades da COP27

Por Bruno H. Toledo Hisamoto*

Em 2013, o então negociador filipino Yeb Saño chamou a atenção de seus colegas na abertura da Conferência do Clima de Varsóvia (COP19), na Polônia, ao anunciar uma greve de fome. O contexto era dramático: à época, as Filipinas ainda sofriam com os efeitos do megatufão Haiyan, que deixou mais de 6,3 mil mortes e quase US$ 2 bilhões em prejuízos materiais, um dos piores desastres naturais da história do país.

Enquanto negociadores se reuniam na capital polonesa para discutir um novo acordo internacional para o clima, muitos filipinos estavam sem comida, sem abrigo e sem recursos para se manter diante de uma catástrofe histórica. O conforto dos corredores e das salas de negociação da ONU, em um continente abastado, contrastava com o sofrimento de milhões de pessoas em um país pobre do outro lado do mundo. No entanto, além das declarações protocolares de solidariedade e a ajuda em caráter humanitário, as nações mais ricas do mundo se limitaram apenas a lamentar o ocorrido. A mensagem não podia ser mais clara: “o problema é de vocês”.

Foi exatamente para contestar essa mensagem que Saño recorreu à greve de fome em plena COP19. Como o problema pode ser apenas das Filipinas se o país pouco ou nada contribuiu para a intensificação de eventos climáticos extremos nas últimas décadas, resultado direto da concentração de gases de efeito estufa liberados pela queima de combustível fóssil desde meados do século XIX? Se as Filipinas não são responsáveis pelo problema, por que raios o país deveria arcar com seus custos sozinho, sem a ajuda das nações que mais se beneficiaram economicamente do carbono liberado na atmosfera terrestre no último século e meio – leia-se, as nações industrializadas desenvolvidas?

Essas perguntas sintetizam um dos desafios mais complexos e dramáticos decorrentes da mudança do clima, a Justiça Climática. Enquanto as economias mais ricas, que contribuíram direta e principalmente para a ocorrência do problema, possuem os recursos e a tecnologia para mitigar os impactos de eventos climáticos extremos, as nações mais pobres são deixadas à própria (falta de) sorte para arcar com os prejuízos de algo pelo qual elas não têm qualquer responsabilidade.

Passada quase uma década, pouco avançamos na questão. A greve de fome feita por Saño na Polônia foi importante para destravar a principal contribuição daquela COP, o Mecanismo Internacional de Varsóvia para Perdas e Danos associados aos Impactos das Mudanças Climáticas (WIM). Esta ferramenta formalizou algo que vinha sendo ignorado nas negociações climáticas da ONU até aquele momento: como lidar com as perdas e danos decorrentes de eventos climáticos extremos nos países mais pobres e vulneráveis? Ainda assim, em termos práticos, o mecanismo não foi capaz de dar concretude à principal demanda das comunidades afetadas pelo clima extremo – a compensação pelos impactos desses eventos.

O tema volta a ganhar destaque na COP27 em Sharm el-Sheikh (Egito), impulsionado pela intensificação recente de eventos climáticos extremos. Somente em 2022, tivemos episódios marcantes como a onda de calor que afetou a Índia durante a primavera, a forte seca registrada na América do Norte, na Europa e na China, além da temporada histórica de chuvas de monções no Paquistão que causou a morte de mais de 1,7 mil pessoas e deixou ⅓ do país debaixo d’água nos últimos meses e as chuvas intensas que caíram em Pernambuco, na Bahia, em Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Em um mundo no qual episódios como esses se tornam mais frequentes e potentes, principalmente em nações menos desenvolvidas, o que fazer com os prejuízos causados por eles às economias mais pobres e vulneráveis do planeta? 

Perdas e danos, uma discussão adiada

Nas últimas Conferências do Clima, a valsa diplomática foi a mesma. Os países em desenvolvimento, especialmente aqueles mais expostos aos riscos de eventos climáticos extremos, levantam a necessidade de mais solidariedade internacional (leia-se apoio financeiro dos países desenvolvidos) para reconstruir aquilo que foi destruído e compensar as perdas sofridas. Por sua vez, as nações ricas reconhecem o problema e fazem suas declarações protocolares de solidariedade para, depois, atropelarem a discussão com outros tópicos da agenda de negociação, empurrando perdas e danos para o final da fila. 

Para sorte dos governos ricos, isso foi mais fácil nos últimos anos por conta do processo inicial de implementação do Acordo de Paris, que exigiu discussões adicionais sobre pontos como o Livro de Regras e a regulamentação dos instrumentos de mercado para redução de emissões. A justificativa era plausível, ainda que cínica: o tema de perdas e danos era importante, mas precisávamos arrumar a casa antes do Acordo de Paris começar a rodar com toda a força. No Egito, essa justificativa não será mais possível. Tudo o que tinha que ser definido para o funcionamento do Acordo de Paris, ao menos no papel, está feito. Adiar a discussão sobre perdas e danos será bem mais complicado agora do que no passado recente.

Para as nações em desenvolvimento, a questão de perdas e danos está inserida em  duas considerações estratégicas para os próximos anos: a reafirmação do princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas; e a cobrança dos compromissos financeiros feitos pelos governos ricos na COP15 de Copenhague, em 2009, que até hoje não foram cumpridos.

A diferenciação de responsabilidades nacionais é “o” pomo da discórdia nas negociações climáticas desde o começo da Convenção da ONU sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), na 1a metade dos anos 1990. O princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas ressalta que a comunidade internacional como um todo possui responsabilidades coletivas no enfrentamento da mudança climática, por sua natureza sistêmica e seus efeitos de longo prazo. Ao mesmo tempo, ele também situa a responsabilização pela ocorrência do problema nas costas das nações desenvolvidas, que queimaram mais combustíveis fósseis neste século e meio de industrialização e, assim, possuiriam um grau de responsabilidade maior do que os países mais pobres, que contribuíram bem menos ou quase nada.

Nas conversas em torno do Acordo de Paris, os países desenvolvidos buscaram “diluir” essa diferenciação em prol de um novo tratado que contivesse compromissos de mitigação de todos os países, principalmente as economias emergentes (Índia, China e Brasil). A lembrança do fracasso diplomático de Copenhague estava fresca na mente dos negociadores, inclusive dos países em desenvolvimento, de tal maneira que eles acabaram aquiescendo em prol de um entendimento entre todos os governos. 

Entretanto, parte dessa “boa vontade” dos países em desenvolvimento estava baseada em uma promessa feita pelos governos ricos em Copenhague em 2009: destinar ao menos US$ 100 bilhões anuais para financiamento climático a partir de 2020. A promessa não diferenciava recursos para mitigação, adaptação ou perdas e danos, mas representava um avanço ao vazio prático que existia nessa seara naquela época.

Como já sabemos, essa meta não se cumpriu. A sinalização mais recente dos países ricos indica que ela poderá ser eventualmente atingida em algum momento até 2025, cinco anos além do prazo original. O problema é que, a essa altura, o montante de US$ 100 bilhões anuais é too little, too late para os países pobres e vulneráveis: esse valor é insuficiente para atender plenamente às necessidades de mitigação e adaptação.

Além disso, com a intensificação dos eventos extremos, a vulnerabilidade deve crescer nos próximos anos, piorada pela falta de recursos para medidas adaptativas. Ou seja, a “conta do açougueiro” das perdas e danos deve aumentar no médio prazo – e, por ora, não existe qualquer sinalização das principais economias do mundo sobre uma maneira para compensar esses impactos. Nesse contexto, o discurso dos países vulneráveis na COP27 deve reforçar que os governos ricos, em linha com o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, precisam deixar de empurrar com a barriga a questão da compensação por perdas e danos.

“Dilema” do financiamento climático: quem financia quem? 

Recentemente, os Estados Unidos e os países da União Europeia sinalizaram disposição para incluir perdas e danos na agenda de discussões da COP27. Isso é pouco, mas representa uma mudança em termos de postura: em Glasgow, no ano passado, europeus e norte-americanos foram os principais opositores de uma proposta apresentado pela Aliança dos Pequenos Estados Insulares (AOSIS) com apoio do G77 e China para criar um mecanismo financeiro específico para compensação às nações afetadas por eventos extremos.

Para os países ricos, a possibilidade de compensação específica para perdas e danos é uma “red line” diplomática. Isso porque, na visão deles, uma nova responsabilidade financeira associada a impactos da mudança do clima poderia abrir uma “Caixa de Pandora” de processos judiciais e pedidos salgados de indenização.

Mesmo com a possível inclusão de perdas e danos na pauta da COP27, isso não significa que essa “red line” tenha sido modificada pelos países desenvolvidos. O próprio enviado especial dos EUA para o clima, John Kerry, reconheceu recentemente que a Casa Branca quer discutir o tema em Sharm el-Sheikh, mas refutando eventuais responsabilizações legais pelos governos desenvolvidos. “Acreditamos que temos que intensificar e temos uma responsabilidade. Aceitamos isso”, assinalou. “[Mas a responsabilização legal] será um problema para todos, não apenas para nós”.

Outro ponto incômodo para os países desenvolvidos nessa discussão está na origem dos recursos internacionais a serem destinados para ação climática nos países em desenvolvimento. Um dos “nós cegos” do financiamento climático atual é o desentendimento entre governos ricos e emergentes sobre quem deve participar desses mecanismos financeiros.

Europa e EUA, por um lado, entendem que as economias emergentes mais ricas, como China e Índia, já teriam condição de servir como potencial doador para o Fundo Climático Verde (GCF) e outros fundos de financiamento climático. Outro argumento utilizado por eles é que esses países, pela pujança econômica e pelo impacto de suas emissões atuais de carbono, teriam alguma responsabilidade para contribuir, ainda que em uma proporção menor que os governos ricos.

Essas nações emergentes, por sua vez, ressaltam que o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, que sustenta a diferenciação das metas nacionais de mitigação, também deveria se aplicar à questão do financiamento climático. Assim, os países desenvolvidos, historicamente beneficiados pelas emissões de gases de efeito estufa do passado e pela riqueza econômica acumulada nesse período, teriam obrigação de assumir a maior parte, senão a totalidade, do custo financeiro da ação climática.

É possível que EUA e Europa tentem levantar essa argumentação em uma eventual negociação sobre compensação financeira por perdas e danos para os países vulneráveis. Considerando o contexto macroeconômico atual, com boa parte dessas nações desenvolvidas sob pressão crescente de contas públicas estouradas e inflação em alta, isso é até mais provável. Da mesma forma, China e Índia dificilmente entrarão na conversa dispostas a abraçar responsabilidades financeiras que, hoje, nem são requisitadas a assumir (ao menos, pelos termos da Convenção). Assim, devemos ver um jogo da batata-quente pra lá e pra cá no Egito a partir da próxima semana.

Perdas e danos na COP 27: mudanças pela frente?

Se olharmos o contexto geopolítico e diplomático, dificilmente podemos esperar por mudanças significativas na discussão sobre perdas e danos na COP27. Já seria difícil em um contexto sem guerra entre Rússia e Ucrânia, crise global de energia e inflação. Com essas cascas de banana no meio do caminho, fica praticamente inviável. Mas as COPs são ocasiões propícias para mudanças inesperadas ocasionadas por movimentações pontuais que acabam impactando o resultado inteiro da negociação. A própria aprovação do WIM em 2013, na COP 19 de Varsóvia, é um exemplo disso.

Foi assim também na COP25, em 2015, o encontro derradeiro de negociação do Acordo de Paris. Durante a 1ª semana de negociação, a meta em discussão pelos países era o limite de 2oC máximo para o aquecimento do planeta neste século, em linha com as análises do IPCC. Na reta final das conversas, uma proposição de países insulares ganhou força nos corredores e atraiu apoios importantes dentro e fora do espaço de negociação: a inclusão de uma meta mais ambiciosa, 1,5oC, como limite definidor dos objetivos do Acordo de Paris. Deu certo.

Para tanto, a palavra-chave é momentum. E poucas COPs começaram sob um cenário prévio tão carregado de momentum para perdas e danos como a de Sharm el-Sheikh. O Paquistão ainda contabiliza os mortos e os prejuízos causados pela pior temporada de chuvas de monção de sua história neste verão, que deixou boa parte do país debaixo d’água. Na última primavera, o problema foi o inverso: uma forte onda de calor assolou parte do Paquistão e da Índia, com temperaturas médias acima dos 45oC por vários dias seguidos. 

No Atlântico, a temporada de furacões de 2022 não foi tão devastadora, mas a passagem dos furacões Fiona e Ian causou destruição em níveis históricos em países como Cuba, Estados Unidos e Canadá. Na Ásia, os tufões foram mais intensos que a média histórica, com destaque para o tufão Noru nas Filipinas.

Na África, mais uma temporada de chuvas abaixo da média no leste do continente colocou milhões de somalis em risco de fome. Já na Nigéria e no Chade, o problema é o excesso de chuvas, que castigaram centenas de aldeias e comunidades. No Brasil, milhares de pessoas seguem afetadas pelas fortes chuvas na Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro, como mencionado anteriormente.

Sem falar, claro, na onda histórica de calor na Europa, que colocou em risco a segurança hídrica de milhões de pessoas e espalhou incêndios florestais desde o Reino Unido até o norte da Itália e a Península Ibérica.

Todos esses eventos extremos causaram danos humanos, materiais e financeiros avassaladores. Para os países pobres, o impacto é ainda maior por conta de sua situação econômica frágil. A perspectiva de que situações desse tipo possam se repetir cada vez mais nos próximos meses e anos pode servir como um fator mobilizador para algum resultado novo nas negociações sobre perdas e danos.

As próximas semanas nos dirão se isso pode acontecer.

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* Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em política internacional e clima do Instituto ClimaInfo.

 

ClimaInfo, 1º de novembro de 2022.

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