Urgência x prudência: o dilema da compensação por perdas e danos na COP27

COP27 perdas e danos
Jerome Delay/AP
Enquanto os países pobres e vulneráveis defendem a criação de um novo mecanismo financeiro para compensar perdas e danos decorrentes de eventos extremos já nesta COP, os países desenvolvidos querem uma análise mais detalhada (e demorada) sobre os fundos existentes

Por Bruno H. Toledo Hisamoto*

A primeira semana da Conferência do Clima de Sharm el-Sheikh (COP27) deixou evidente a divergência entre países desenvolvidos e em desenvolvimento sobre os meios para lidar com perdas e danos decorrentes de eventos climáticos extremos. Enquanto o primeiro grupo defende uma abordagem mais cautelosa e estudada – e, consequentemente, mais lenta -, o segundo insiste na necessidade de os governos sinalizarem já nesta COP um compromisso político com um novo mecanismo financeiro, com recursos novos e adicionais, para perdas e danos. 

Essa divisão antecipa um processo decisório que promete ser difícil na próxima semana. Sem um texto de decisão ainda esboçado e com as discussões ainda em um estágio inicial, os ministros nacionais terão bastante trabalho para chegar a um entendimento sobre o tema, o que deve estressar ainda mais o estoque limitado de confiança entre os países. 

Compensação, não reparação

A inclusão de perdas e danos na agenda de negociação da COP27 foi um marco importante no processo multilateral da ONU. Pela primeira vez, os países concordaram em dedicar tempo e atenção ao tema, que aparecia apenas nos eventos paralelos e discursos de chefes de governo, com pouca ressonância nas salas de negociação.

O contexto pré-COP tornou bastante complicado para os países repetirem agora o malabarismo diplomático de outras conferências. A intensificação de eventos extremos, como tempestades, estiagens, ondas de calor e incêndios florestais no último ano em praticamente todos os continentes do planeta colocou os governos dos países desenvolvidos na defensiva. Aqui, vale destacar a pressão do Paquistão pela inclusão de perdas e danos na agenda da COP27, depois das enchentes históricas que deixaram ⅓ do país debaixo d’água no último verão. 

Entretanto, essa inclusão não foi pacífica: os negociadores gastaram 40 horas no último final de semana antes da COP só para concordar com essa mudança na agenda de negociação. Sameh Shoukry, ministro egípcio das Relações Exteriores e presidente da COP27, conseguiu destravar parte da discussão ao estabelecer uma diferenciação clara entre perdas e danos associados à ocorrência de eventos climáticos extremos e reparação dos países pobres pelos países ricos em virtude de impactos de longo prazo da mudança do clima. 

Essa diferenciação não é pouca coisa. Uma das grandes preocupações dos países desenvolvidos na questão de perdas e danos é que ela possa abrir uma “caixa de Pandora” de responsabilização formal: ou seja, o surgimento de um novo flanco de ataque dos países em desenvolvimento às economias ricas, com pedidos sucessivos e cada vez maiores de reparação pelos efeitos nocivos da mudança do clima em suas economias. Isso porque, pela Convenção da ONU sobre Mudança do Clima (UNFCCC), que rege as negociações multilaterais no tema, o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas assinala que os países desenvolvidos, que se beneficiaram economicamente com a queima de combustíveis fósseis desde a Revolução Industrial, possuem uma responsabilidade histórica maior do que a dos países em desenvolvimento, que pouco contribuíram para a ocorrência do problema. 

Assim, esse recorte conceitual – que eliminou uma margem possível para os países pobres levantarem aspectos de reparação histórica – foi importantíssimo para que a discussão pudesse finalmente se iniciar em Sharm el-Sheikh. De toda forma, as discussões nesta 1ª semana da COP27 mantiveram-se bastante polarizadas, com pouco sinal de concordância. 

O copo vazio: perdas e danos como necessidades urgentes

Para os países em desenvolvimento, principalmente aqueles mais vulneráveis à mudança do clima, a compensação por perdas e danos associados a eventos extremos é um ponto urgente e cada vez mais preocupante. O argumento deles é de que, com a intensificação desses episódios catastróficos, o impacto agregado tende a crescer e a consumir uma parte cada vez mais substancial de seus PIBs. 

O caso do Paquistão é bastante levantado aqui na COP27. Os prejuízos totais causados pelas enchentes históricas de 2022 ainda estão sendo contabilizados, mas a estimativa mais recente indica que o país perdeu cerca de US$ 30 bilhões com o desastre (cerca de 10% de seu PIB), entre infraestruturas destruídas, vidas humanas perdidas e lavouras arruinadas. As perdas colocaram mais pressão sobre a economia paquistanesa, que já atravessava uma grave crise desde a pandemia. 

Hoje, esses países possuem ferramentas limitadas para compensar, mesmo parcialmente, os prejuízos causados por eventos extremos. Em termos imediatos, a ajuda humanitária internacional até consegue minimizar o sofrimento das vítimas, mas as agências humanitárias intergovernamentais e não-governamentais vivem uma crise sistêmica de falta de recursos, o que limita significativamente sua capacidade de resposta. 

Já em termos de médio e longo prazo, os mecanismos de crédito do Banco Mundial e de ajuda macroeconômica do Fundo Monetário Internacional não conseguem atender adequada e rapidamente às necessidades dos países afetados por eventos extremos. Uma bronca dos países em desenvolvimento é que essas instituições multilaterais não estão equipadas nem preparadas para lidar com perdas e danos. Pior: em alguns casos, o uso de ferramentas como empréstimos acabam aumentando a dívida externa desses países, limitando sua capacidade de investimento futuro. 

A principal questão levantada pelos países em desenvolvimento é a urgência do problema. Quando o evento ocorre, faltam instrumentos financeiros ágeis e eficazes que possam liberar recursos na rapidez e no volume necessários para minimizar os impactos. Com os eventos extremos cada vez mais frequentes, a urgência se torna ainda mais grave. 

Por isso, a grande demanda desses países na COP27 é pela criação de um mecanismo financeiro, como um fundo, específico para compensação por perdas e danos. Os recursos destinados para esse fim seriam novos e adicionais – ou seja, não incluiriam recursos já anunciados para outras áreas, como mitigação e adaptação – e todos os países em desenvolvimento teriam direito de recorrer a ele. Esse mecanismo estaria alocado dentro da estrutura formal da UNFCCC, como o Fundo Climático Verde e o Fundo de Adaptação. 

O copo meio cheio: “devagar com o andor” com perdas e danos

Em contraposição, os países desenvolvidos (e doadores) defendem uma abordagem mais cautelosa, prudente, na discussão sobre perdas e danos na COP27. Para eles, o “calor do momento” impede uma análise mais cuidadosa e, consequentemente, uma solução mais eficaz e adequada para o problema. 

Praticamente todos esses governos reconhecem publicamente a relevância da questão (o que, em termos históricos, já representa um avanço em relação ao que se tinha até pouco tempo atrás) e a necessidade de discuti-la formalmente dentro da UNFCCC e do Acordo de Paris. Da mesma forma, eles também indicam que a criação de um novo fundo específico para perdas e danos nesta COP seria contraproducente. 

Os Estados Unidos deram o tom do que os países desenvolvidos entendem ser o caminho mais adequado. Ao invés de criar um novo fundo agora, os representantes norte-americanos propuseram a criação de um programa de trabalho para perdas e danos, com um cronograma de ações e decisões a serem tomadas nos próximos dois anos. 

Esse cronograma incluiria estudos detalhados sobre os instrumentos financeiros existentes, para identificar lacunas que possam ser corrigidas rapidamente e problemas que demandem uma resposta diferente. A análise incluiria também outras fontes de financiamento fora do ambiente da UNFCCC, como bancos multilaterais de desenvolvimento e a iniciativa privada. O processo também contaria com workshops regionais, para levantamento de necessidades específicas de cada comunidade. 

Assim, a COP27 definiria esse programa de trabalho, com mandato até 2024. Nesta ocasião, espera-se, os países teriam os insumos necessários para tomar uma decisão – seja criar um fundo novo para perdas e danos, aproveitar os mecanismos já existentes ou outro tipo de amarração institucional de resposta. 

Não precisamos queimar muito neurônio para entender que o processo defendido aqui seria mais lento, no estilo característico da UNFCCC. Isso bate de frente com a urgência defendida pelos países em desenvolvimento para o problema de perdas e danos. Ao invés de termos uma resposta agora, o que os países desenvolvidos prometem é mais um processo diplomático, repleto de etapas e documentos, lento, maçante e custoso. Enquanto isso, os eventos climáticos extremos ficam mais frequentes, causam mais destruição, e as nações vulneráveis continuam expostas sem ajuda internacional mais substancial. 

A pergunta de trilhões de dólares: como destravar a compensação por perdas e danos?

As conversas sobre perdas e danos prosseguirão na segunda semana da COP27, mas está claro que, sem algum game-change, caminhamos para uma resposta típica da UNFCCC para essa questão: a criação de mais um programa de trabalho, com mandato de dois anos, no qual os países discutirão detalhe por detalhe, linha por linha, vírgula por vírgula, como o problema pode ser enfrentado. 

Os países em desenvolvimento seguem unidos na demanda por alguma resposta mais imediata. Se a proposta inicial era a criação de um fundo específico para perdas e danos agora no Egito, desenha-se uma alternativa mais prudente, mas ainda assim contundente: uma declaração política na qual os governos dos países desenvolvidos se comprometem formalmente com alguma solução que inclua recursos novos e adicionais para essas compensações. Ou seja, se não é para termos um fundo novo agora, que se tenha então uma promessa de criação desse fundo no médio prazo. 

Algumas alternativas estão sendo exploradas pelos dois lados. Representantes dos países desenvolvidos querem aumentar o volume de recursos prometidos para perdas e danos nesta COP27, como um sinal de “boa vontade” e de disposição para seguir nessas conversas pelos próximos dois anos. Já os negociadores dos países em desenvolvimento tentam amarrar esse tópico com a discussão sobre a nova meta coletiva de financiamento climático que sucederá o (ainda descumprido) objetivo de US$ 100 bilhões anuais mínimos. 

O que está evidente, ao menos até aqui, é que dificilmente teremos um fundo para perdas e danos criado já nesta COP27. Resta saber o que os países conseguirão concordar como alternativa até o final desta segunda semana de conversas em Sharm el-Sheikh.

________________________

* Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em política internacional e clima do Instituto ClimaInfo.

 

ClimaInfo, 14 de novembro de 2022.

Clique aqui para receber em seu e-mail a Newsletter diária completa do ClimaInfo.